![]() Em março deste ano, no início da pandemia no Brasil, inaugurei um documento em meu computador chamado “diário de um vetor”. Escrevi pouquíssimas vezes: quando tive que voltar do Rio de Janeiro para a casa de minha mãe no interior de Minas Gerais, quando Bolsonaro fez seu primeiro pronunciamento estapafúrdio chamando a Covid-19 de gripezinha, quando os conflitos entre “salvar a economia versus salvar pessoas” se acirraram, quando fui à Belo Horizonte e vi um jacaré na Lagoa da Pampulha. Escrevi também quando o Brasil atingiu a marca de quatro mil mortos e quando essa marca ultrapassou os quarenta mil. Hoje somam-se mais de cento e sessenta mil mortos no Brasil e mais de um milhão e trezentos no mundo. Já não acompanho esses números diariamente, nem o Google dá destaque a notícias sobre as mortes pela pandemia. A título de registro, a bola da vez são as vacinas, que despontam como única esperança. Desde março, muita coisa mudou. Comecei a pandemia me sentindo um vetor, uma assassina em potencial, capaz de transmitir o vírus sem querer, inclusive para desconhecidos. Depois, fui ao medo de eu mesma adoecer e de lá alternei entre o medo e o desejo, pois quem sabe assim poderia atingir a imunidade/liberdade. No início disso tudo, tive o ímpeto de tentar entender o que estava acontecendo, de registrar, de lutar. Salvei prints do twitter de Bruno Latour, discuti com pessoas na internet, ouvi podcasts, li sobre a pandemia de Gripe Espanhola, guardei os poemas enviados por países que cooperavam entre si com máscaras e outros equipamentos. Porém as grandes catástrofes não podem ser entendidas, nem há como estar completamente consciente nesses momentos. Ao longo dos meses senti que o mundo se desmantelava lá fora, mas a vida começava a dar indícios de seguir. Lembrei dos livros que li sobre a Segunda Guerra Mundial, das pessoas se casando no front soviético, de Anne Frank estudando em seu esconderijo, vivendo os dramas pessoais de seus treze anos. A capacidade da vida de seguir é brutal. Agora já se passaram nove meses e muitas pessoas voltaram às ruas, mas muitas permanecem em casa. Enquanto escrevo, impressiono-me com o quanto pôde acontecer nesse tempo, mesmo num mundo aparentemente parado. Parecem cenas longínquas os canais de Veneza limpos, as ruas de Nova Deli vazias. Penso em como vamos nos lembrar das ruas se enchendo de novo, das pessoas com máscaras personalizadas, dos jogos de futebol com as arquibancadas sem ninguém. Em meu “diário de um vetor”, escrevi sobre Donald Trump sem jamais imaginar que ele perderia as eleições deste ano. Não há mesmo como saber do futuro. Por enquanto, sigo sendo um vetor não sacrificável (como não é o caso dos visons que foram assassinados há pouco na Dinamarca). Além disso, sigo vítima em potencial. Durante esses nove meses, muitas vezes só queria deixar a peteca cair. Queria jogar a maldita peteca para bem longe. Mas o movimento da vida se impõe: se a peteca cai, a recolhemos do chão e continuamos o jogo. Ana Paula Rodrigues cursa o doutorado em Antropologia Social no Museu Nacional-UFRJ. Seu projeto de pesquisa e de tese é sobre a poesia do povo Xakriabá, Minas Gerais. É também poeta e lançou este ano seu primeiro livro infantil, intitulado "Vó Maria vai ao Rio". Para Luane Bento dos Santos Angústias e esperanças
Rondam a madrugada. Estamos em recolhimento, Ela disse Minha irmã de Iemanjá Trocando mensagens Cibernéticas espacialidades Fazem a gente se encontrar E a gente encontra alento Em musicas Sonhos Pesadelos Poemas e desenhos Livros e mensagens Amizades Irmandades que estão de alma presente Mas com o corpo noutro lugar E nem tão cedo a gente se encontra E nem tão cedo a gente se vê Quanto tempo, pois é Pois é, quanto tempo? Guenta a rotina Espera a vacina Sorte de quem está com os seus Entre os seus Quem tem uma turma dentro de casa Nem todo mundo tem Tem gente sofrendo De solidão ou de companhia Tem muita mulher aflita Mulher, menina, adulta e criança, Adoecida, esmorecida Com dor que não tem mais onde doer De hoje, de ontem De agora e de antes E do que está para acontecer Estamos recolhidas, presas em mundos de intimidades casas-paraíso ou casas-cativeiro-cruel ou casas-de-sempre, só alegria, trabalho, briga, barulho A gente segue vivendo a rotina comida, trabalho, criança, faxina correria, aflição, oração reza, reza reza pra não ficar doente não virar número num estado que dá de ombros e finge ser nada de mais Entre muros a vida continua, mas já mudou. Sem as idas e vindas Sem pendular de lá pra cá Sem a rua com sua euforia seu cansaço e prazer sua labuta bruta ônibus, trem dióxido, poluição, aflição, afobação cano de descarga, rodoviária sufoco lotação supervia amendoim, é três por um real sinal sono e simpatia estação, travessia e construção. A rua saiu da rotina Virou exceção A rua ainda mais suja Mascarada Apressada Desconfiada A rua é contaminação “Sai que eu tô de rua!” Grita a vizinha Pro netinho e pra netinha Bem em frente ao seu portão. A rua é perigosa Normalmente Pra muita gente Inda mais se é preto se é mulher se é do candomblé se é o que é. Umbanda, quimbanda, batuque Filho de toda gira Se anda com suas guias Sabe bem como é andar Alerta, assustado Traçando um atravessado olhar do outro lado transeunte apavorado atravessando a rua pra não cruzar E se vive nas quebradas parado na esquina Sabe que é padrão Desviar do camburão Sirene apagada, Chega do nada Pronto pra te pegar. Pra muita gente A rua já é medonha Risco já é normalmente Mas agora somou problema Por fora do esquema Um troço que não se vê Que circula na comunidade Risco maior pra quem não crê Calado por dias cresce em você rodopia e dá voltas Entra na casa Sem ser convidada Invade teu quintal Chega em quem não devia Em quem te dá a mão Vem de quem nem pressentia O risco de sair Pôr o nariz pra fora do portão Vai naqueles que tu mais abraça Beija Alimenta Amamenta Ama Acalenta Galera que dorme contigo Que divide um sentimento come, brinca e faz festa chora e ri Mas o clima agora não é de festa Festa é “a-g-l-om-e-r-a-ç-ã-o” (Soletre-se, para caber no entendimento!) Inverno rigoroso Hora de hibernação De fugir da confusão criança não deve sair Brincadeira, correria: não. É coisa de menos fazer “Não tome vento, menina” “Fica em casa que a noite está fria” (O dia também) E aquela gripe, resfriado, rinite Escarro, tosse, coriza Meleca de toda guisa Traz nova preocupação Estamos recolhidas Com nossas almas reunidas E me vi assim também Falo comigo mais a cada dia E transito entre espaços e tempos Becos e vielas Portas trilhas e tramelas Traçados na memória Tanta história Tantos gritos Tantos medos Silêncios, fugas, esquecimentos perdidos, escondidos, enterrados nos cantos, ocultos no vão São chaves velhas sangrando na mão Portas trancadas Baús de Retalhos Mofo nos agasalhos Espalho tudo no chão Tento refazer meus passos Minh’alma viaja Por dias e horas vagas Por tantos lugares Viajo e me encontro Me encaro de lá Com outras caras Outras máscaras Risos, sorrisos e lágrimas Poucos mapas Tantas feridas Abertas, secretas Estilhaços que ainda Circulam e ardem no caminhar Pra dor não me pegar de surpresa Tento manter a vela acesa Pra Orixá me guiar Pra não perder a sanidade Pra não me amargar na maldade Das lembranças que nem queria lembrar É tanta doença que esse mundo tem pra tratar Nestes dias de isolamento Meu rebento é o sol e eu sou um lamento Ter uma cria é riso É motivo pra continuar. Me banho na luz e feito borboleta Peço a Iansã que me leve no vento Pra fora de mim, me deixe viajar Que me mude o pensamento Invada meu coração Me permita voar Peço a Iemanjá, Odoiá que me venha com água fria O ori me molhar que o mar me alimente com uma canção ao fim do dia acalente o coração A Oxum imploro que me geste me embale, Mãe me renasça Oraieie A Nanã que me enraíze nas forças das ancestrais Que a lama me purifique Que o barro me edifique Pra que eu possa me levantar Peço a Ewa que faça o sol entrar pelas frestas do muro e do portão Que me deixe levar Purifique o peito de tanta mágoa e me conceda o horizonte pra me guiar. No quintal eu me sento Abro a esteira e me estendo A Oxóssi que é o meu lugar Arolê, Pai. Debaixo das folhas eu peço Me dê a palavra certa Peço a Ogum o caminho aberto Me ensina a me guiar. Troco a água acendo folhas e peço axé Te falo, minha irmã querida Se não fosse você aquela noite seria mais aflita Umas palavras trocadas podem curar Agradeço a você e àquelas outras Mulheres amadas que não andam à toa Grandes lobas farejam na vegetação Me ensinam com suas pegadas a caminhar A saltar, a uivar, a amar e a ser amada A sorrir e estender a mão Apesar de tudo Deitar no chão Acender a fogueira e luzir Ser luz na escuridão Nessa distancia sigamos unidas Recolhidas no mesmo roncó Num barco que seja por nós guiado E nos leve a serenos mares Terras férteis, curadas por canções Mesmo de corpo trancadas Sigamos de almas plenas Livres e serenas Dando voltas no tempo Deixando o vento levar Nos encontrando lá e cá Catando pedaços, fragmentos conhecendo descansando e refazendo Vamos nos recolhendo e crescendo Girando mundo a nos encontrar Procurando o fim desses males Rezando pra Omolú no silêncio rodar essa terra e curar. Atotô! Safira Karina Reink Silva [[email protected]] etnografa os quintais do Jardim Belo Horizonte, bairro da região de Morro Agudo, Baixada Fluminense, observando a relação entre quintais, casas e corpos, dimensões imbricadas, mutuamente construídas, materializadas nestas espacialidades vivas que se conectam entre si através dos fluxos e narrativas de seus moradores. No final de 2019, surgiram na China os primeiros casos da COVID-19, doença causada pela novo corona vírus que logo se espalhou pelo restante do mundo. Escrevo esse texto em novembro de 2020 e a doença ainda está presente e é um desafio diário lidar com ela. Várias dimensões da minha vida têm sido atravessadas por essa situação. Há muito tempo, por exemplo, não reservava um tempo para me dedicar à escrita livre, ou seja, fora do jargão acadêmico usual ao qual me dedico desde 2010, ano em que iniciei minha graduação. Sempre gostei de escrever poesia, contos, crônicas. No início da quarentena, pensei em usar todo o disponível para escrever novamente. O que planejei não ocorreu. Passei dias e dias, como costumo dizer: avulso. Literalmente, jogado, sem conseguir cumprir alguns prazos, sem nem mesmo conseguir responder aos amigos que me enviavam memes – que tanto gosto, via Facebook ou WhasApp. Às vezes eu sentia muita culpa – confesso que ainda sinto, mas com menos frequência. Em outras ocasiões, tentei entender a situação e ser generoso comigo mesmo. Somente mais recentemente, em que estamos otimistas quanto à espera por uma vacina, é que me senti confortável para voltar aos meus ensaios livres, ao que gosto de fazer. A insegurança que esse ano tem representado por vezes me dominou e me atordoou. Mas não tem problema! A atual situação, apesar das epidemias serem frequentes na história humana, tornou 2020 um ano sem precedentes na vida de qualquer pessoa. A ponto de nem mesmo os nossos pais, por exemplo, que no meu caso são as pessoas com quem me sinto em segurança, terem vivenciado experiência parecida ou possuírem referências para nos consolar. Assim, muitas saídas e soluções para ansiedades foram construídas (e ainda estão) de forma conjunta. É por isso que nesse desabafo agradeço as pessoas especiais que, de perto ou de longe, diante do isolamento que a situação atual pede, tem sido pacientes e parcerias leves nessa caminhada. Tempos de pandemia tem nos ensinado que ser criativo ou produtivo pode simplesmente significar sobreviver. Do lado de cá, eu seguirei tentando, deixando a beleza e a poesia, a qual tanto pretendi me dedicar no início da quarenta, a cargo de Guimarães Rosa, que não errou quando disse que “a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”. Beijos e abraços!Clique aqui para editar. Sobre o autor: Ramon Feliphe de Souza é doutorando do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde, e estuda temas ligados à História do Norte de Minas Gerais, as relações entre ferrovias, meio ambiente e saúde, a Ação Social da Igreja Católica no século XX e o envolvimento desta instituição no apoio a programas de desenvolvimento rural no Brasil. E-mail: [email protected]
Rio de Janeiro, 23 de outubro de 2020, ano pandêmico. Uma das coisas que nós, pós-graduandos, mais temos que lidar são os prazos. No mestrado, vinte e quatro meses contados para terminar. No doutorado, quarenta e oito meses. Tem prazo do exame que chamamos de qualificação - recomendado que ocorra na metade do tempo total do curso. Tem prazo para entrega de trabalhos de disciplina, geralmente um mês depois que o curso acaba. Tem prazo também para submissão de artigos para revistas acadêmicas, para inscrição em congressos e simpósios, para envio do texto completo, para envio de relatório interno, para atos administrativos do curso, ufa! Se quiser, também podemos contar com o prazo de inscrição no processo seletivo para ingresso no curso de mestrado e doutorado - talvez um dos primeiros e mais corridos. Enfim, prazos e mais prazos. Mas qual é o prazo da pandemia? Consigo enxergar a preocupação com o prazo da pandemia quando meus pais, meus mais velhos, perguntam “quando isso vai acabar?” ou “rezo para que isso termine logo”. Quando minhas sobrinhas de dez anos de idade, gêmeas, minhas mais novas, dizem “a quarentena é muito chata, será que acaba no próximo mês?”. Meus mais velhos e minhas mais novas são referências para mim nesse momento. A paciência de minha mãe em tornar nosso espaço um lugar de bem-estar junto ao futuro visto explicitamente nos olhos de minhas sobrinhas são algumas coisas que me fazem seguir. Um misto de desespero (sim! é desesperador!) e esperança (seria essa palavra?) marcam esse momento pra mim. É desesperador ver um projeto de genocídio de jovens negros oportunizado com um vírus pelo Estado. Como o que vimos, o que vemos e o que tragicamente aguardamos ver. O que vi: um querido eterno aluno tendo sua vida retirada pelas mãos do Estado. O nome dele é Rodrigo - Uma vida . O que ouvi: os tiros das armas protocoladas pelo Estado que tiraram a vida de Matheus na esquina de minha rua. A esperança… ela tá aqui, mas ela é mais difícil de ser expressa nessa linha. Mas a sensação de semanas atrás (ou meses?) na contagem perdida dos dias é que o prazo da pandemia foi prorrogado. Pra quando? Alguém poderia perguntar num grupo do whatsapp. Ninguém sabe. Sem resposta. Manifestação por justiça pelo assassinato de Matheus Oliveira, 23 anos, na rua São Miguel, Morro do Borel, Rio de Janeiro/RJ. (Foto: Jacques Pinto, junho/2020) Parede de quarto: Nada é tão nosso quanto os nossos sonhos. (Foto: Jacques Pinto, abril/2020) Autorretrato: selfie. (Foto: Jacques Pinto, outubro/2020). Trabalhar com prazo, mas sem sabê-lo. No meio da pós-graduação, isso não existe - inclusive os prazos estão aí, o relógio da pós-graduação não para. O calendário tá acessível. A avaliação já está marcada. Apesar disso, o prazo da pandemia não sabemos. E aí, o que fazer? E acho que esse é o verbo: fazer. O que dá pra fazer num prazo prorrogado e indeterminado como esse? Dá pra ter prazer? Dá pra não se desesperar? Dá pra não se isolar ainda mais? Poderia falar aqui sobre como estou tentando burlar as ansiedades, existir dentro desse espaço da pós-graduação no contexto da pandemia que me é resistência muito antes do vírus chegar, explicar como substituir conversas de café, corredor e ônibus por ligações e mensagens para criar e manter laços. Mas o que dá vontade de fazer é perguntar mais uma vez: qual é o prazo? Qual é o prazo pra esse inferno acabar? Com o prazo da pandemia prorrogado, ao invés do alívio que poderia surgir caso fosse da entrega de um relatório, a ansiedade misturada com desânimo aumenta. Para alguns, parece que o prazo terminou há um ou dois meses atrás, mas pera aí? Ninguém avisou? Ela vai acabar. Mas os outros prazos de outros infernos na terra irão acabar também? Já me senti durante esse período como se estivesse dentro do túnel dos irmãos Rebouças no sentido Zona Norte (fugindo do planeta de aparência branca chamado Lagoa). Naquela galeria maior, num trânsito infernal, no calor do verão carioca, ônibus lotado sem ventilação, suor escorrendo pelas costas enquanto seguro a mochila pesada, tentando ver literalmente pela brecha entre as pessoas a luz do fim do túnel. Me sinto numa curva pela sensação do tempo já transcorrida que dá a ideia de que a abertura está lá, mas ainda distante. Túnel Rebouças. (Foto: Gaban. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Túnel_Rebouças . Acesso: outubro/2020) Vamos seguindo do jeito que dá. Tem gente que vai dizer que o pior já passou. Mas aí vem uma pergunta: o que é o pior pra você? Fico no aguardo se alguém descobrir o prazo. Sobre o autor: Jacques Ferreira Pinto, PPGHCS/COC-FIOCRUZ, 23/10/2020, Rio de Janeiro/RJ. Atualmente na tese de doutorado, pesquiso a busca por liberdade de africanos e seus descendentes escravizados por motivos de saúde e doenças numa comunidade rural chamada Vínculo do Jaguará em Minas Gerais durante o século XIX. E-mail para contato: [email protected] / @jacques.pinto.
Acordo e, virado para o teto, agradeço por estar vivo. Dou três respirações profundas, tentando adiar o momento inevitável em que percebo que, mais uma vez, tudo se repete. Inalo – mais um dia; exalo – de novo tudo isso? De novo: inalo – de novo o feijão para temperar; exalo – se cozinho para a família, eu não estudo. Como que no meio de uma quarentena aumenta a preocupação com o totalmente inessencial? Pela terceira vez: inalo – não quero mais isso; exalo – não escolhi isso, mas estou aqui e pronto. Olho para minhas mãos. Olho para meus pés enquanto me alongo, esticando a coluna dura e fria, sentindo meu peso no chão, o equilíbrio corporal se estabilizando. Tento me manter sólido. Estou vivo e digo a Deus: fui salvo das garras da morte. Não morri. Sei por saber, mas do outro lado da linha intransponível entre o nosso mundo e o dos mortos, há dias e noites? Daquele lado, eles também não acordam? Por acaso se assombram de não ter sido salvos das garras da morte?
Há muita gente morrendo no Brasil hoje. Segundo os dados oficiais (que expressão estranha, ter que oficializar um dado), mais ou menos 70 mil almas. Considerando que a cada 24 horas são mais ou menos mil que se vão para o além, e que é possível que haja um pequeno período de espera entre os dois mundos, a conclusão lógica é que o ar deve estar saturado de almas. O barômetro do éter deve estar estourando o mercúrio. Temos medo de inalar o vírus, mas – e isso me veio nas últimas noites sonâmbulas – e se estivermos inalando os mortos do vírus? A desgraça está se aproximando em dois vetores. A escala numérica aumenta verticalmente enquanto horizontalmente se expande a presença do vírus pelo país. São linhas que se curvam como se estivessem ascendendo ao paraíso, enquanto o vírus se alastra pelo médio e pequeno Brasil. Incrédulos, o vírus nos lembrou que vivemos em algo chamado sociedade, e presos dentro de casa, fomos aproximados à força daquela abstração O Inferno Chamado Brasil. O inferno são os outros, disse Sartre, mas ele não disse o quão rápido o inferno começava a apertar seu cerco. Que tinha eu em comum com o Primeiro Morto, algum infeliz lá em São Paulo? Que compartilho com ele, a não ser a língua materna e, talvez, nossa paranoia étnica que nos faz temer que simultaneamente vivemos no inferno, no limbo e no paraíso? Talvez o fardo de estarmos juntos aqui, e não, sei lá, na Suécia, e ter que lidar com esse mesmo fardo. Pode ser que o maior feito das guerras culturais brasileiras tenha sido revelar que talvez a única experiência comum a todos os brasileiros (aqueles que ainda têm alguma decência) seja não querer estar aqui e agora. De qualquer modo, ame-se o Brasil ou não, com o passar das semanas as mortes da pandemia foram alastrando-se pelo interior físico e social, destruindo qualquer parâmetro ou escala que tínhamos antes. Falam que o Brasil não é para iniciantes, mas nem os mais experientes esperavam pelo ataque psíquico que sofreríamos nos primeiros meses de 2020. Como tudo no Brasil desde a colonização, a tragédia foi se espalhando à medida que o vírus ia fazendo suas próprias bandeiras. Tropeiro fiel às tradições sagradas dos nossos antepassados bastardos, demandou seu quinhão de almas, seja por bem ou por mal. Junto com a expansão geográfica, a expansão numérica de infectados e mortos, o encontro de duas escalas contíguas mas de diferentes níveis de abstração, digamos assim. Se vermos o problema com olhar bíblico (não que este esteja em falta no Brasil de hoje) estamos diante de duas entidades: de um lado, o Cavaleiro da Peste, arrasador de mundos e destruidor galopante; do outro, o grande rol que determina quem é salvo e quem é (ou já foi) condenado – um acerto de contas com a morte e um aviso para os que restaram. O complicado é que o vírus, sendo invisível, só pode ser percebido pelos seus efeitos no nível abstrato das coisas. A terrível Linha da Bolsa de São Paulo despenca, e os oráculos do templo de Guedes vão às câmeras demandar mais sacrifícios humanos. Ah, e a linha que contabiliza os mortos sobe. Tem isso também. O vírus, mísero pacote genético que desnudou os reis e humilhou os sábios, assemelha-se àqueles personagens de desenho que tomam uma poção de invisibilidade e que, depois de pintar o sete, só são descobertos quando se percebia o traço de pegadas na lama, despensas inteiras devoradas e estranhos buracos na parede. Como todas as evidências sugerem, o vírus não é negro e nem indígena, e nem pode ser fuzilado, então rapidamente Bolsonaro e a sua turma da demolição perderam interesse nele. Agora, imagine se fosse! Qual seria a estratégia de combate a iniciar a reação enérgica do governo? Instalariam uma UPP em cada pulmão brasileiro? Dez caveirões para subir e descer as veias e artérias de cada cidadão? Haveria algum policial de tamanho celular a mirar na cabecinha do vírus e apertar o gatilho? Ou, talvez, Marcos Pontes poderia desenvolver nano-garimpeiros para invadir nossos frágeis corpos de carne e osso! Por motivos que de vez em quando me escapam, desde meados de maio mantenho atualizado o que eu chamo o “placar da morte” na varanda do apartamento dos meus pais em Brasília. Inspirando terror e assombro nos pedestres mortais que passeiam com seus cachorrinhos ou vão ao supermercado pelo que se chama de rua aqui, sua confecção simples oculta sua macabra função. É uma gambiarra simples, que demanda apenas tinta guache preta, folhas de jornais velhos e fita crepe. Daria para fazer na sua casa, dado que seja visível da rua. Ao total são onze folhas de jornal recortadas e 44 pedaços de fita crepe (quatro para cada folha). Na linha superior, coloquei o número atualizado dos mortos por covid-19 (cinco folhas, até batermos 100 mil mortos, o que virá em breve). Na inferior, debaixo dos números, escrevi em letras garrafais a palavra MORTOS. Por sorte, estamos no segundo andar, garantindo que meu letreiro seja facilmente visto da rua. Todo dia, de manhã, vou à varanda e atualizo a primeira faixa. Esta deve sempre mudar, porque o número só aumenta. E de forma impiedosa e inexorável, pois os mortos não renascem e, em situações ideais (não estamos numa dessas, mas essa é outra história), não desaparecem. Eles só ganham mais companhia. A não ser que as leis fundamentais do universo não tenham sofrido as mesmas distorções que os dados do governo federal sobre a pandemia, meu placar claramente indica que o mundo dos mortos hoje deve estar ainda mais sobrecarregado do que as UTIs dos vivos. Mas suponho que a terra das almas seja muito, muito grande e eles não tenham esse tipo de problema por lá. Já a faixa de baixo, é claro, não muda. Os mortos continuam mortos e é preciso dizer que estão mortos. Inicialmente, eu só ia deixar os números lá na primeira faixa, sem qualificá-los. Mas pensei que um número avulso poderia ser confuso para quem estivesse na rua. Imaginava um transeunte passando e se perguntando, 23 mil o quê? Não queria testar as pessoas e nem provocá-las. Não queria que ficassem adivinhando o óbvio. Com esse placar fúnebre, quero dizer algo como, “Bom dia, morreu tanta e tanta gente na noite de ontem. Eles não foram salvos das garras da morte e nem conseguiram escapar do peso da escuridão.” Para ser sincero, “placar da morte” é um nome algo enganoso, porque sugere que minhas manhãs sejam um negócio lúgubre, imbuídas da solenidade de recordar os mortos. Não são. Não que eu esteja bem, mas ainda não enlouqueci. Por outro lado, não sei muito bem como classificar esse mural. Tem algo de testemunha, claro. Também é uma denúncia, dado o genocídio fabricado pelo governo federal e consentido pelas elites nacionais. Finalmente, poderia até dizer que é um pedido de ajuda, uma esperança que da varanda eu possa ver outros letreiros sendo exibidos em outras varandas – mas isso nunca aconteceu. No fundo, acho que se trata de algo mais rotineiro. Como o escrivão Bartleby, minhas palavras são: I would prefer not to. Preferiria que não. Preferiria que não houvesse tanta gente morta. Preferiria que não estivéssemos onde estamos, seja lá qual for a profundidade real ou imaginada do nosso buraco. Preferiria que não fosse testemunha da morte, mas da vida. Preferiria que não. Em tempos de crise, o negativo tem mais valor que o positivo, seja na teoria quanto na práxis. Ou seja, eu poderia ter escrito nas folhas pregadas de jornal as palavras FORÇA, ou VAI PASSAR, ou ESPERANÇA, ou alguma outra mensagem açucarada que aludiria ao problema mas não o enunciaria – tipo o coronavírus do tamanho de um elefante branco. Logo no primeiro dia do letreiro, quando havia “apenas” 16 mil mortos pela doença, o síndico do prédio interfonou e, com aquele tom de quem não gosta mas também não quer comprar a briga, mencionou que algum vizinho tinha reclamado da mancha na visão paradisíaca da Ilha da Fantasia – alcunha antiga para Brasília. Lógico que reclamaram. Pois o ethos das elites brasileiras manda que o negativo ande de cima pra baixo, e não o contrário. Por exemplo, deve-se sumir com as favelas e com os seus habitantes, com a evidência da realidade brutal a apenas alguns quilômetros de distância. Mas é terminalmente proibido trazer à tona toda a morte que sustenta a tranquilidade sublime dos “inocentes do Leblon” (ou dos Jardins). Assim, o bolsonarismo, cuja força maior não está no seu avatar como gestão pública mas como culto religioso dissimulado, continua fiel ao seu berço de nascimento. E é por isso que os bares da Dias Ferreira continuam lotados e os iates seguem velejando, porque pobre morrer não é razão para a bela festa nacional acabar. Todos nós conhecemos o jogo discursivo desse credo: oscilar entre se fingir de coitado e perguntar porque “eles” “torcem contra o Brasil” e, num piscar de olhos, mandar jornalistas calar a porra da boca. Sendo uma ideologia própria aos charlatões, o bolsonarismo conjuga o otimismo melado de dona de casa (reservado ao cinismo de quem apoia mas não quer saber da porrada) com a tanatofilia que cabe à gestão diária da tragédia: segurar recursos a estados, negar os mortos, pedir que as pessoas se envenenem com cloroquina. É Augusto Cury com Ustra, salão de cabelo e revista Caras com palmatória e o caveirão subindo o morro. Minha mãe, preocupada com meu estado mental, diz que eu deveria parar com isso; diz que é aguentar um carma muito pesado. Já minha irmã me recomenda tomar banho de ervas mais frequentemente, porque querendo ou não agora o sopro da morte está mais perto de mim. Ela não está errada. Sabe-se bem que dizer o nome de algo é convidá-lo; e que escrevê-lo, de certa forma, é dar-lhe uma espectralidade real demais para os nossos gostos. Será um grande indício contra as loas da civilização à palavra escrita que os primeiros cuneiformes não se tratavam de épicos ou cânticos de amor, mas sim de dívidas em cabeças de gado e alqueires de trigo. O que antes era uma relação entre pares, um momento do movimento recíproco entre dádiva e contra-dádiva, agora era escrita e assim tornava-se mais longeva que o credor e o devedor. Como a morte, a palavra escrita não pode morrer. Nietzsche, com alguma razão, via a leitura como um substituto para a vida. Dizem que detestava quem conseguia ler um livro pela manhã. Daí a ambiguidade desse letreiro improvisado que vejo claramente aqui da minha cama. Não é uma relação propriamente tranquila que tenho com ele. Tem dias que não consigo encará-lo e decido manter as persianas fechadas. Há domingos que ele não recebe nenhuma alteração. Meu pai, voltando do supermercado da quadra (não há esquinas em Brasília), percebe minha inação e me pergunta se ainda não atualizei o letreiro. Cínico e abatido, respondo que não precisa se preocupar: cartaz ou não, as pessoas ainda continuarão morrendo. Mas meu cinismo entrega, como o negativo da sua afirmação, o objetivo real do letreiro. A morte, evidentemente, continua sua tarefa incólume. Sou eu que sou responsável, como tantos outros são, a dar-lhe nome e algarismo, a sacrificar-lhe folhas de jornal e pinceladas de tinta escolar guache preta. Existem dias em que duvido do propósito do letreiro macabro. Concebi-o como forma de combater o negacionismo do governo, de atacar as mentes tranquilas dos mandarins letrados de Brasília, de assolar o obstinado “tá-tudo-tranquilo-até-que-não-tá” que parece reger nossa vida moral e política. Nos primeiros dias, o fazia com o ardor dos justos, sabendo que havia inimigos aqui e ali que se opunham à mancha de realidade que invadia este cantinho da Ilha. O que eu imaginava virar briga de condomínio depois da ligação do síndico acabou em um e-mail escrito num misto de juridiquês com denúncia moral que, dada a falta de qualquer oposição dos outros moradores, deve ter conscientizado o síndico, ou pelo menos tê-lo dado um pouco de vergonha na cara. E aí os dias foram se passando. A seca invernal veio se instalando. Os números só aumentaram. Na quarentena, o placar informa minha noção da passagem do tempo, pois conto o passar das semanas pela dezena de mortos que acompanha mais ou menos uma dezena de dias. O que era estatística então passou a virar algo pessoal, não porque eu me tornei mais empático, mas porque sua testemunha foi se tornando habitual, parte da minha rotina matinal. É algo pessoal. O meu letreiro é apenas um diário que só a mim pertence, mas que escrevo com as letras do Brasil. É algo como meu arranjo da última melodia da nossa eterna tragédia nacional. Quando ficaram sabendo do meu novo hábito, fui parabenizado por amigos e colegas, que invariavelmente perguntavam o que era aquele cartaz acima da minha cabeça que podiam espiar em alguma vídeo-chamada. Corajoso, disseram. Mas não sofro por ele; não sou nenhum mártir pela verdade. Desses, o Brasil já tem de montão, e suponho que alguns deles estejam na sequência de algarismos que decora a parte interna da minha varanda. Como todos nós, também me acostumei com os números cada vez mais estrondosos, com subir a casa do milhar a cada manhã, dividindo minha caneca de café com a ciência de que na noite mais de mil almas tinham deixado nosso mundo. Antes de me deitar, vou à varanda para fumar um cigarro. Às vezes dou as costas para a rua e me viro para o letreiro, esse registro precário da hecatombe. Tento transformar sua contabilidade mortuária abstrata em algo concreto. Olho para a quantidade de mortos e digo, entre tragadas, lentamente, tentando saborear as palavras, tentando me agarrar à brutalidade que é tanta gente ir para o mundo dos mortos: “Estas almas não foram salvas das garras da morte. Elas não escaparam do peso da escuridão.” Não consigo entender. É incompreensível. Felipe Moretti pesquisa os movimentos de Caldeirão e Pau de Colher, que se deram na década de 30 no Sertão nordestino. Interessa-se sobre como seus discursos podem oferecer-nos outras visões sobre a relação entre o humano, o divino e as temporalidades associadas ao fim do mundo. Acredita que, olhando assim para este passado recente e que foi violentamente destruído pelo Estado Novo varguista, possamos encontrar respostas para as questões dos nossos tempos, também assombrados pela mudança climática global e o colapso de regimes geopolíticos estabelecidos. Neste pequeno texto gostaria de expressar os sentimentos de piração que passei a sentir durante minha reclusão forçada no período da pandemia do coronavírus. Por viver há pouco tempo na cidade, achei que me isolar não traria problemas emocionais, mas morando num apartamento minúsculo, sem chão, já estava em estado de entrar em delírio, a qualquer momento. É desse delírio que gostaria falar, a partir do meu novo olhar, desde que vim morar na cidade. Pela experiência de viver na aldeia e na cidade, pude avistar o movimento das pessoas de diversas formas. É nesse sentido que irei pontuar algumas questões que acredito sejam relevantes para a minha reflexão, para meu modo particular. Mesmo desde antes, já vivendo no tetã re (cidade), vinha observando e sentindo essa sensação, como se eu estivesse numa jaula; morar na cidade é, literalmente, estar preso, encarcerado. Aí eu me pergunto: somos condenados por quê e por quem? As pessoas da cidade sempre viveram com essa sensação? Esse sentimento de encarceramento não é tratado como direito à saúde. Que ironia estar em meu quarto, depois do meu surto explodir. Já carregava comigo esse surto, mas tinha conseguido controlá-lo até a explosão da doença. Todos deveriam surtar por serem punidos, aprisionados, cercados numa jaula minúscula. Não sei se realmente estão se sentindo bem ou apenas fingindo que estão bem, para criar uma ilusão de que as cidades são felizes. Entendo que as pessoas que estão satisfeitas e acomodadas são aquelas que nunca tiveram oportunidade de observar paisagens de várias janelas, de várias esquinas. Talvez por isso, os que têm direito de movimentar seus corpos estão marcados por uma sensação de frieza: muitos djurua acham normal um morto ou um vivo estar exposto na rua. Achar normal que as pessoas morem nas ruas e não fazer nada é a mesma coisa que assistir a um espetáculo. Lembro de um acontecimento, pouco depois de minha chegada ao Rio de Janeiro, um dia quente, em pleno meio-dia. Havia grupos de professores se manifestando na frente da ALERJ. Naquele dia estava indo a um evento na Universidade Federal Fluminense, em Niterói, a convite de uma professora para dar uma palestra, e passei por lá porque é caminho para pegar a barca para Niterói. Nunca mais esqueci daquelas imagens terríveis, na saída do metrô. Não sabia o que estava acontecendo. Fui caminhando normalmente, senti meus olhos ardendo e vi muita fumaça. Continuei andando. Muitas pessoas corriam, outras eram carregadas desmaiadas na frente de policiais que disparavam spray de pimenta e balas de borracha como se fosse chuva de granizo. Imagens de guerra. Um senhor foi atingido. Lembrei da xe djaryi, minha avó, e fiquei muito emocionada. Comecei a chorar, no fundo, e a gritar (sapukai), que não é grito e sim um canto sagrado que eu sempre ouvia no meu sonho. Minha avó dizia que todas nós mulheres temos nossos cantos. O grito sapukai vem da garganta da mulher, dona da voz alta e fina, a voz nhakyrã da cigarra, que é da mulher. Toda mulher tem seu canto sagrado. Ele pode surgir a qualquer momento, na tristeza, na alegria, na raiva ou num momento de enfrentamento, como naquele dia. O que me deixou chocada foi que aqueles que estavam na luta, sendo atacados por policiais, passando mal, ficavam perto de outros tomando cerveja e que viam aquela situação como se não estivesse acontecendo nada. A maioria dos parentes indígenas que vieram estudar ou trabalhar nas cidades, principalmente nas cidades grandes como São Paulo ou Rio de Janeiro, fica também impactada com a presença e a quantidade de moradores de ruas, independente da idade ou gênero, sem ser vistos, ou seja, sem impactar outras pessoas. O choque que levam quando se deparam com essa realidade é muito assustador. Principalmente para aqueles que nunca estiveram nas cidades grandes. A questão não é morar nas ruas, e sim a forma como são abandonados pela própria sociedade das cidades. Fiquei muito tempo refletindo sobre essa frieza das pessoas da cidade, que normaliza os abandonos no meio de tantas casas. Vivem expostas a ventos, chuvas, calor etc. Não que isso seja ruim – esses elementos da natureza fazem partes das nossas vidas para viver – mas pessoas sem teto estão sem proteção, vulneráveis a quaisquer enfermidades no corpo. Em nossos costumes, frieza, mboraywu he’yn, já é uma doença. Isso me deixava chocada e muito pensativa. Tentava entender por quê. Onde esses seres humanos têm direito? Devem estar no papel, no gabinete de alguém que sabe das leis e dos direitos humanos. Não sei se as chamaria de pessoas com py’a, com sentimentos. As pessoas que realmente têm py’a podem delirar, pirar, chorar, cantar, gritar. É normal para nós, mas tudo é falado na reunião ou na casa de reza. Por isso que nós Guarani sempre estamos em nhomongueta, encontro de conversa, para que não se chegue a explodir. Hoje eu entendo o que é doença para muitos djurua. Mba’e hasy, mba’asy, coisa que dói ou doença, aparece no corpo quando já está no último estágio. Falo por metáforas para libertar minha angústia. Depois que os corpos já estão penalizados, castigados, esquartejados e amputados do espírito, é difícil ressuscitarem ou criarem armaduras para que não desmontem facilmente. O corpo desmontado dificilmente saberá se reerguer. Não estou dizendo que somos melhores, mas os djurua kuery sempre acham que se resolve uma doença cuidando dos doentes ou com vacinas. De que adianta curar uma parte do corpo amputada e deixar outras partes sem cuidado? Os vírus sempre irão contaminar as partes sem vacina. Não consigo entender a lógica dos djurua kuery quando tratam da doença sem entender que o caminho do bem-estar no mundo inclui humanos e não humanos em volta. Quando tentam cuidar dos corpos, só enxergam os que já estão contaminados. Por isso, enquanto pesquisam para descobrir a cura de uma doença que está no corpo, ela já infectou o corpo inteiro e chega a hora de morrer. Muitos morrem até descobrir a vacina exata para aquela doença. Viver confinados sem poder nhemongu’e, se movimentar, sem ter condições de sonhar. A expetativa de vida é uma doença coletiva daqueles que são sufocados pela “pandemia” do desequilíbrio da humanidade. As cidades não seguem os sistemas e não pensam como Guarani, portanto tive que me movimentar de acordo com os movimentos de onde estou vivendo. Não há como pensar como Guarani ou não ser capturado por essa frieza do contexto do lugar onde estou inserida. Mas esse nem sempre é meu jeito de ser, e sim marca que carrego – tive que carregar – do lugar. Essa minha tristeza, que às vezes se transforma em fúria, vem da minha angústia, de não ter para onde olhar para ver coisas diferentes, de não poder ficar sentada no chão, ouvindo a voz dos meus parentes cantando, rindo ou falando em guarani, para meu py’a ficar mais calmo. O sofrimento físico, a dor do corpo que vem do castigo da opressão, pode se tornar uma fúria ou tristeza, passa das sensações como se fosse respiração tóxica, insuportável, como se fôssemos espiritos criminosos, responsáveis pela nossa morte. Antes de vir morar aqui, não tinha percebido que as cidades, se não tivermos cuidado, podem dar a ilusão de que oferecem mais possibilidades de estudar ou trabalhar, como muitos jovens indígenas já ouviram falar. No nosso costume guarani, temos o entendimento de que existe cerca, e não pessoa cercada. Chamamos “cerca” de kora ou kora’i. Ela não é utilizada para encarcerar pessoas, e sim paras as crianças que estão aprendendo a dar passos. Kora’i ou amba’i significa ‘cerca redonda’, mas pode ser quadrada ou de um lado apenas, geralmente feita pelos pais para ensinar os bebês a se apoiar e se segurar para não cair. Estas cercas ficam nas casas, onde as crianças brincam, até que estejam seguras para andar. Depois que o bebê – kyrĩ ou mita’ĩ – aprende a andar, os pais retiram todas as cercas, para que a criança tenha autonomia de andar e explorar os espaços onde está sendo inserida, portanto, onde começa sua relação com o espirito da natureza em cada etapa de sua vida guarani. Kora é coisa que pode ser redonda, como por exemplo ipara kora, que quer dizer ‘coisas que são redondas’. Estão relacionadas com a origem do nome ou espírito da pessoa guarani. Mas esse não é meu foco. O que estou querendo explicar é que nós não aprendemos a viver na cerca fechada. Entendemos que existem cercas para nos apoiar e nos ensinar a andar firme, e não para confinar e encarcerar nossos passos. Não é uma cerca que aprisiona, um lugar fechado que priva a circulação do corpo. Já é delirante ficar literalmente numa casa com quatro janelas e sem chão. Minha agonia, meu surto psicótico, que havia me capturado talvez desde a infância, durante minha escolarização... Podia controlá-lo com a sensação de autonomia, de estar vivenciando outras atividades, como encontrar meus amigos e professores, ou participar de eventos, congressos, que me davam suporte para continuar respirando, mesmo vivendo sufocada. Sufoco: a agonia que sentia, mesmo vivendo no meio da sociedade, que aparentemente tem muitas pessoas. Estando em uma sociedade em que vivemos encarcerados, é claro que iria entrar em desespero e ficar em estado de choque, de alucinação. Talvez seja comum, mas nunca pensei que ficaria desapontada em meu quarto, olhando para a mesma coisa e vendo o mesmo ângulo. Como não enjoar olhando as mesmas coisas, olhar do mesmo lugar, como uma roleta? Sentia-me sozinha. Texto original editado, com autorização da autora, por Thiago Sá. Sandra Benites [[email protected]], da etnia guarani nhandewa, é doutoranda do PPGAS/MN/UFRJ. Seu atual projeto de pesquisa trata da vidas das mulheres guarani e tem como título: “Mulher falando: fundamentação do teko tekohaa partir da visão das nhandesy kuera do Mato Grosso do Sul, mostrando várias facetas kunhangue reko”. Texto enviado no dia 7 de junho.
O primeiro semestre do doutorado coincidiu com a pandemia de COVID-19.
Não faz muito tempo, no pouco longínquo 2017, à época mestranda, cursei a disciplina História das Doenças. Entre tantas experiências da doença, estudamos também duas pandêmicas: gripe espanhola e AIDS. Ambas ocorridas, com intervalo de cerca de seis décadas, no século XX. A experiência da AIDS, mais especificamente a de combate ao HIV/AIDS, é o meu objeto de pesquisa desde o mestrado. Por isso, eu tinha certa afinidade com os debates elencados sobre ela. No entanto, foi a primeira vez que estudei mais profundamente a gripe espanhola e seus desdobramentos catastróficos expressados, principalmente, na alta mortalidade e na interrupção do cotidiano. O que quero destacar, de um ponto de vista particular, é como, para mim, era inimaginável uma interrupção dessa magnitude no nosso cotidiano. Como conjecturar o isolamento social e a impossibilidade de aglomerações e de encontros presenciais? Vivenciar uma pandemia é muito diferente de estudá-la; e este texto resulta justamente dessa vivência. Embora eu more no Rio de Janeiro, estou passando a quarentena com a Larissa, minha namorada, e a Broinha, nossa cachorrinha, em Mariana, Minas Gerais. Em meados de março, vim visitá-las e não consegui voltar ao Rio. De qualquer forma, se eu não estivesse aqui, viria correndo. Minha mãe faz parte do grupo de risco do Covid-19 e uma pessoa a menos em um apartamento pequeno faz muita diferença. Ela é empregada doméstica e por conta da pandemia está trabalhando dois dias por semana. Apesar da jornada reduzida, o que nos deu certa tranquilidade, o sentimento de culpa por poder ficar em casa enquanto ela precisa sair para trabalhar é inevitável. A isto se soma a tristeza pelos que perderam a vida em virtude do Covid, a aflição diária gerada pelo número de mortes e de novos casos da doença e o quadro político do Brasil perpassado pelas desigualdades sociais e étnicas. O convívio com a Lari e a Broinha tem me ajudado a atravessar esse momento. Sem as duas, as coisas certamente seriam muito mais difíceis. Na medida do possível, os dias em Mariana têm sido tranquilos. Evidentemente, adaptamos a nossa rotina a situação pandêmica. De máscara e sempre respeitando o distanciamento, consigo, atualmente, sair duas vezes por dia para dar uma voltinha de cerca de 650 metros com a Broinha. Nos fins de semana, as ruas ficam muito movimentadas, não saímos. Em casa, já testamos inúmeras receitas (aprendi a fazer pão) e assistimos a praticamente todos os filmes do Studio Ghibli (entre tantos, recomendo A Viagem de Chihiro e Memórias de Ontem). Parte do meu planejamento para o primeiro semestre do doutorado não se concretizou. Inicialmente, o objetivo era me concentrar na bibliografia e na pesquisa no acervo da Coleção ABIA. Com a impossibilidade de ir ao arquivo, tenho me dedicado as leituras. Como Larissa e eu estamos no doutorado, há uma ajuda mútua e um esforço conjunto em manter a rotina de estudos. Isto é muito importante para mim, sempre fui uma aluna que precisa de constância, do estudo diário (exceto nos dias de descanso). Tenho seguido um cronograma de leitura, mantido o ritmo e amadurecido algumas ideias para a pesquisa. Evidentemente, há dias em que não consigo render muito. Quando isso acontece, respeito os meus limites e tento não alimentar um sentimento de culpa por um dia academicamente não tão produtivo. A quarentena tem ensejado uma série de reflexões e a retomada de duas grandes paixões: a literatura e a música. Encarei Laranja Mecânica e sua linguagem própria, voltei a me sentir desafiada por Agatha Christie, fiquei inquieta com Fahrenheit 451. Ah, a música! Das artes, ela é o meu grande amor. Revisitei tanta gente que gosto e conheci uma galera muito legal. Meu violão e eu estamos muito próximos, não sou uma musicista, mas ele e eu nos entendemos. Confesso que sinto falta de uma guitarra, mas nada que tocar violão sob o céu de Minas em uma noite de lua cheia não resolva. Voltar a fazer aula de música e dedicar-me com afinco ao violão e a guitarra são resoluções pós-pandemia. A experiência da quarentena e da pandemia também reiterou algumas convicções. Fiquei feliz por não precisar passar por ela para entender como, para mim, é importante estar e confraternizar com as pessoas que amo, valorizar a natureza, fazer trilhas, praticar esportes coletivos, nadar, ir à praia, ao bar e a São Januário torcer pelo Vasco. Eu adoro The Cranberries. As músicas da banda têm sido grandes companheiras minhas na quarentena; ora ouvindo-as, ora tocando-as. De modo especial, tenho ficado presa à estrofe inicial de Dreams: “Oh, my life Is changing everyday In every possible way” “Oh, minha vida Está mudando todos os dias De todas as maneiras possíveis” Esse verso expressa bem o que tem sido, para mim, a experiência da quarentena. Ela não é monótona; ela é instável e inconstante; ela me assusta. Entretanto, estou tentando lidar com ela da melhor forma que posso e que consigo. Sobre a autora: Doutoranda em História (PPGHCS/COC/Fiocruz). No mestrado, pesquisei a organização do movimento LGBTI da cidade do Rio de Janeiro para combater o HIV/Aids. No doutorado, pesquiso os impactos de políticas conservadoras e da LGBTIfobia na resposta brasileira ao HIV/Aids entre os anos de 1996 e 2019. E-mail: [email protected] No Ceará, o isolamento social iniciou oficialmente no dia 20 de março de 2020. Dia 19 eu estava em Iguatu devido ao trabalho e, como era feriado de São José, já arrumei a mala em direção à Fortaleza com a intenção de passar os dias de isolamento em casa com minha mãe. Naquele momento, tinha na cabeça que seriam poucos dias. Cheguei a pensar: vou levar os livros e as roupas que precisarei durante um mês. Imaginei que no final de abril estaríamos todos de volta à rotina. Hoje é 01 de junho e marca o primeiro dia de transição para a retomada das atividades econômicas no estado. E eu ainda estou em isolamento, assim como muitas pessoas que conheço. A palavra que talvez melhor defina esse período é cuidado. Sim, cuidado. Cuidado com o que considero mais valioso: as pessoas que amo. Estou em casa e evito as saídas desnecessárias. As poucas idas à rua são feitas para compras no mercado ou na farmácia. O olhar para a rua se tornou restrito à moldura da janela. Nesse tempo, algumas perguntas estão sempre presentes na cabeça: “será que vou adoecer?”; “será que alguém que conheço e amo vai adoecer?”; “o que será a vida depois disso tudo?”; “terá uma vida depois disso?”. Não tenho as respostas e talvez, agora, ninguém as tenha. Tenho a impressão que tudo isso começou e a gente não percebeu que deu o último passeio na cidade, a última ida à praia, o último encontro com os amigos. Teria sido diferente se soubéssemos que era uma despedida temporária e que passaríamos mais de dois meses sem poder repetir? Quase sempre nas conversas com os amigos estamos sempre repetindo: “quando isso acabar, vamos tomar uma cerveja, vamos à praia, vamos ao cinema”. Eu creio que são as memórias desses bons momentos que nos fazem seguir em frente e esperar de dias melhores. Nesses quase três meses de isolamento passamos por muitas datas importantes e que tiveram que ser comemoradas à distância. Meu aniversário (a Thayane de 31 anos ainda não viu os amigos, não deu um rolê na cidade!), aniversário da minha irmã, sobrinha, dia das mães, a defesa de doutorado de uma amiga muito querida e tantas outras coisas. Tantos motivos para comemorar e que ficou “pendente” pra depois do isolamento, só não sabemos quando será. Tudo isso que é tão bom e faz muita falta. É junho como eu já disse antes. Na vida “normal” essa hora já estaríamos pensando nas festas juninas. O São João é o xodó dos nordestinos e todos comentamos: “o coronavírus foi longe demais! Acabou com o São João!”. Brincadeiras à parte, este será um junho diferente. Apesar da retomada gradual das atividades, as festas é claro não podem acontecer (ainda). E, por enquanto, vestiremos nossa roupa xadrez para ficar em casa comendo as delícias juninas e conversando pelas redes sociais que são nosso alívio. Chamadas de vídeo, mensagens de texto (eu gosto, viu?!), Facebook e Instagram são os encontros possíveis nesse momento. Esse texto não teve pretensão de ser científico, afinal eu já tenho uma tese para escrever. E sobre isso eu falei bem pouco e foi proposital. Um dos assuntos mais comentados nesses tempos é como manter a produtividade com medo e sem saber do futuro. Bom, ando devagarinho. Qualifiquei em março e agora estou tentando aproveitar esse tempo para corrigir o texto a partir das considerações feitas pela banca. Além disso, tenho tentado também me inserir como historiadora que atua no campo das ciências e da saúde. Mas com calma e fazendo o que posso porque as incertezas também me deixam angustiada. Voltando ao texto aqui exposto: ele foi construído a partir das saudades de andar pela cidade e encontrar as pessoas amadas. Todas as fotos fazem parte do repertório pessoal que, juntamente com as lembranças, me mantém viva em dias difíceis. E não querendo explorar as questões tristes que a pandemia nos traz (e são muitas, nós sabemos e estamos vivendo), esse texto também quer ser um abraço de esperança. Esperança de que em breve poderemos viver bons momentos e encontros. Por enquanto: cuidemos do que é valioso. E lutemos para que todos possam também assim fazer. Sobre a autora: Sou doutoranda em História das Ciências e da Saúde na Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz e desenvolvo tese sobre o processo de disciplinamento do misoprostol (medicamento utilizado para aborto) no Brasil. Nesse texto lancei mão das saudades, lembranças e dos desejos que aguardam o fim da pandemia. E-mail: [email protected] Dia 4 de junho de 2020. Hoje acordei com a notícia de que já temos 89 caso de Covid-19 na cidade de Atalaia do Norte. Com preocupação à flor da pele escrevo esta mensagem. Estou há quase três meses em isolamento social na minha cidadezinha chamada Atalaia do Norte, na tríplice fronteira entre Colômbia, Peru e Brasil. Quando as restrições de isolamento social começaram a ser acatadas pelas autoridades locais, eu, mesmo sabendo do grau de estrago que a pandemia de Covid-19 estava causando em outras regiões, conforme diziam os noticiários, senti-me bem protegida e longe de ser alcançada por vírus. Pior, logo que cheguei, na primeira semana, peguei "um forte gripe" com sintomas parecidos aos do vírus. Quando profissionais de saúde souberam, pediram meu isolamento social. Tinha vindo com muita saudade de rever meus parentes e amigos. Queria abraçá-los. Tenho a “minha mais velha” (shavoyomema, em língua marubo), chamada Iracy (Ni-shavo Kama). Queria muito estar na sua companhia, ouvir suas histórias, pois, pela sua idade avançada, não sei até quando tempo ela estará entre nós. Agora a preocupação de a não ver com mais tempo aumentou. O medo de perder meus parentes mais velhos não é paranoia minha. Tenho acompanhando pelas redes sociais (grupos de whatsapp, Facebook, Instagram e YouTube) que outras etnias vizinhas no território colombiano, peruano e brasileiro, principalmente na região do alto Solimões, estão perdendo grandes lideranças que têm uma trajetória de vida na luta por nossos direitos. Tradicionalmente falando, os mais velhos são importantes para as populações Indígenas. É uma perda irreparável. Não somos os brancos (nawa-rasin) que só dão importância aos conhecimentos que estão nos papéis. Nossa riqueza está na memória dos mais velhos. Como Marubo, digo que é o que nos torna yura-kuin, “gente de verdade”. É pavoroso imaginar que mais cedo ou mais tarde esse inimigo invisível chegará à minha região. A única coisa que me dá esperança é a luta de meus pajés. Assim como em outras etnias dessa região, meus parentes pajés estão tentando amansar a doença. Logo que cheguei, meu pai e outros que estão nas aldeias estavam se comunicando através da radiofonia para saber os sintomas do vírus. Depois fizeram pajelança da massa de jenipapo para que todas as populações se pintassem, mas não conseguiram, porque a ordem de isolamento social da prefeitura os impediu de fazer aglomeração na cidade. Ressalto que, como em qualquer outra região, os indígenas residentes nas aldeias levam seus filhos para estudar na cidade, e isso ultimamente tem aumentado. Muitos não têm veículo próprio para voltar a suas aldeias na época de férias. Movimentos como a União dos Povos Indígena Vale do Javari – UNIVAJA, juntamente com outras instituições, ajudaram, com gasolina e canoas, para que os estudantes indígenas e seus parentes retornassem a suas aldeias. Mesmo assim, ainda permaneceram funcionários dos estados e município. As compras de alimentação já eram difíceis, mas de uma hora para outra todos os comércios triplicaram os preços de suas mercadorias. As populações correm para fazer estoque e exageram. Vejo os que não têm emprego e que dependem dos benefícios do governo, da pescaria e da roça (agricultores), brigarem por migalhas, como sempre. Com a desigualdade social cada vez mais visível, é uma sensação desesperadora imaginar que isso não vai ter fim. Enfim, como não posso ajudar muito, a minha pequena contribuição está sendo manter meu pai informado sobre os sintomas do Covid-19 para dar continuidade à pajelança de amansamento do vírus, graças às instalações de rede celular que foram feitas em algumas aldeias. Havia vindo para entrevistar o irmão de minha mãe (meu koka Tama-sainpa), oriundo da aldeia maronal do alto Rio Curuçá, mas só tive tempo de realizar três encontros de entrevista. Ele viajou às pressas e não pude me despedir. Estava muito gripada, não podia sair de casa, e em seguida meu pai também viajou. A impressão é de que minha única arma é meu corpo pintado de jenipapo para amansar a doença, para que meus parentes das aldeias estejam protegidos, mas os meses de maio e junho estão tirando meu sossego. Desde que tivemos a confirmação do Covid-19 nesta cidade, o número de caso só está crescendo. Já noticiaram o primeiro óbito e, além disso, há notícias de que caçadores e pescadores estão invadindo nossa Terra Indígena. Entre a população em geral só se fala do presidente do Brasil, que espalha suas palavras espinhosas. Nosso futuro é cada vez mais sombrio, surgem cada vez mais mentes confusas. Que lição tiraremos daqui para frente? A tendência do Covid-19 é se propagar mais nesta região, pois a cidade vizinha, Benjamin Constant, afrouxou nessa segunda-feira o isolamento social. Ainda nesta semana os transportes fluviais entre Tabantiga e Benjamin Constant também voltarão a funcionar. Como vai ser o futuro? Que lições tiraremos disso tudo daqui para frente? Transcrição de mensagens áudio recebidas por Bruna Franchetto, com autorização da autora. Nelly Barbosa Duarte Dollis, da etnia marubo, é doutoranda no PPGAS/MN/UFRJ. O tema de sua pesquisa é uma revisão do sistema e das relações de parentesco marubo, do ponto de vista indígena. Nelly está em isolamento em Atalaia do Norte (AM), onde foi confirmado o primeiro caso de contágio por Covid-19. ![]() Introdução O presente texto busca apresentar uma linha de tempo de como os Maraguá do Rio Abacaxis vivenciaram a pandemia do novo corona vírus durante os primeiros cinco meses de 2020. Os Maraguá são um povo arawak que reside no interflúvio dos rios Madeira e Tapajós, nos rios Abacaxis, Curupira, Urariá e Paracuni, estado do Amazonas, região dos municípios de Nova Olinda do Norte, Borba e Maués, respectivamente.[1] A prima da gripe No dia 20 de janeiro de 2020, uma lancha da prefeitura de Nova Olinda do Norte viajou até duas aldeias do povo Maraguá (São José e Terra Preta) localizadas no Rio Abacaxis. Lá, os funcionários da prefeitura ergueram uma placa informando a construção de duas escolas indígenas pelo município, com início naquela mesma data e término no dia vinte de março. Depois, os funcionários foram embora por duas semanas e... nada mais aconteceu. Por algumas semanas, os Maraguá se perguntaram o que tinha acontecido e se essa obra ia, de fato, acontecer. No início de fevereiro, um barco trouxe um grupo de trabalhadores para ambas as aldeias, algo que não foi inicialmente muito bem visto pelos Maraguá. Havia um desejo de que os próprios indígenas fossem contratados para construírem sua escola, algo que seria mais barato para o município e que ao mesmo tempo geraria uma renda para os moradores. Alguns conflitos, inclusive, surgiram acerca de quantos trabalhadores de cada família e de cada aldeia poderiam ser contratados. Foi em uma visita para discutir a contratação de seu filho para trabalhar na obra que o AIS[2] e cacique da comunidade Pilão me perguntou se salsicha era “carne de chinês”. Teriam mostrado para ele um vídeo de uma fábrica de salsichas na China onde os próprios trabalhadores serviam como matéria prima. Comentou que se é assim que os chineses fazem, deve ser daí que surgiu essa nova doença, esse tal de coronavírus. No início de março, e com a chegada da doença em Manaus, famílias que moravam em Nova Olinda começaram a se mudar para as aldeias. Esse foi um processo que se acelerou rapidamente quando as aulas foram canceladas no dia 10 deste mesmo mês, pois um dos grandes motivos que resulta na mudança de famílias Maraguá para a cidade é a necessidade de encontrar escolas para seus filhos, especialmente os adolescentes, já que o segundo grau é oferecido apenas em Nova Olinda. Na medida em que mais indígenas chegavam, a capacidade das comunidades de providenciarem alimentos começou a ser dificultada, já que muitos vinham sem as ferramentas necessárias para obter seu sustento (anzol, canoa, redes de pesca etc.), além de não possuírem roçados (algo que demora meses para abrir, e que só é feito entre julho e agosto). Pior, os primeiros meses do ano são conhecidos como o inverno amazônico (quando os rios sobem e transbordam suas margens), já sendo uma época de escassez. Porém, as normas de hospitalidade e reciprocidade levava a fome a ser distribuída de forma relativamente igualitária, já que, tão logo a farinha de uma família acabava, pegavam ‘emprestado’ de outra. No final de março, durante a noite de sábado, uma reunião foi chamada pelo cacique-geral, cujo principal tema era a pandemia. Após a discussão, duas decisões foram tomadas. Primeiro, todos iriam permanecer na aldeia e não viajariam mais para a cidade. Segundo, iriam solicitar que a obra parasse e os trabalhadores se retirassem até o final da pandemia. Nessa reunião também se tornou claro como, ao invés de termos como ‘Covid-19’ ou ‘novo coronavírus’, os Maraguá referenciavam-se à doença como ‘a corona’, considerada a prima da gripe. Como uma senhora Maraguá alertou para mim, “sai da chuva porque a corona é a prima da gripe”. Naquela mesma noite, três homens que estavam presente na reunião viajaram para Nova Olinda do Norte. O cenário de escassez combinado com a necessidade de receberem benefícios sociais regularmente os colocou em uma situação em que decidiram ser necessário fazer compras na cidade.[3] Uma semana depois, os trabalhadores da obra voltaram. O dono da empresa que realizava a obra havia prometido que todos os trabalhadores haviam feito o teste na cidade e que nenhum estava infectado com o novo coronavírus. Os Maraguá sabiam que isso era uma mentira, porque pessoas suspeitas de haver contraído a doença eram levadas até Manaus para serem testadas. Porém, o barco que trouxe os trabalhadores carregava um motor de luz que os Maraguá da comunidade Terra Preta haviam recebido mas nunca tinham conseguido transportar para sua aldeia. Sendo assim, fingiram acreditar. Na manhã do primeiro sábado de abril, um debate teológico ocorria dentro de uma igreja adventista da aldeia Terra Preta. Um senhor recém-chegado de Nova Olinda do Norte lamentava que as igrejas da cidade tinham sido fechadas e proclamava aos congregados que não temia esse vírus que estava se espalhando por aí e que caso alguém tentasse colocar-lhe uma máscara, a jogaria no chão, pois esse senhor tinha Jesus no corpo e ele o protegeria. Mais tarde, um outro senhor cautelosamente afirmou aos presentes que só porque tinha fé em Deus não iria parar de se resguardar, afirmando que só porque era crente não iria “virar de lado para um banzeiro”.[4] Já o indígena encarregado de pregar o sermão no serviço daquele sábado afirmou aos presentes que tinham muita sorte de ter a oportunidade de viver no final dos tempos. ‘A corona’ era mais um exemplo do poder da Bíblia de prever tudo o que está por vir. Como um Maraguá da comunidade Maruim me disse, elucidando um sentimento manifestado por muitos, “isso ai são as escrituras se realizando. O que está no Apocalipse. As visões de João”. No dia 20 de abril, o primeiro caso de coronavírus foi confirmado em Nova Olinda. No mesmo dia, uma fila de mais de quinhentas pessoas formou-se para receber o novo benefício anunciado pelo governo federal. O cacique do São José viajou até Terra Preta para conversar com o cacique-geral, e juntos mais uma vez exigiram que os trabalhadores se retirassem e que a obra fosse paralisada. A doença que começou na China, que matava mais de mil por mês na Europa e que tinha começado a matar em Manaus, também havia chegado no município. Ficou claro que os Maraguá concebiam a doença como uma frente, algo que começou no outro lado do mundo e que vinha se aproximando do Rio Abacaxis, e agora era necessário se isolar de novo. No domingo do dia 26 de Abril, os Maraguá fizeram uma comemoração tardia do dia do Índio, contando com a presença de moradores de todas as seis comunidades do Rio Abacaxis.[5] A comemoração também serviu como despedida para os trabalhadores, que concordaram com a paralisação da obra. Estes, inclusive, participaram de algumas das competições, como a corrida carregando toras de madeira e a luta piãguá.[6] Quando perguntados que clã representavam, responderam jocosamente que eram do “clã da construção”.[7] Um barco madeireiro tentou passar pela comunidade enquanto a comemoração ocorria, o que levou o cacique geral a convocar os presentes para irem juntos pararem a embarcação. Usando o barco da obra, os trabalhadores junto com os indígenas abordaram a embarcação pesqueira e exigiram que voltasse, algo que foi interpretado pelo cacique do São José como uma intervenção divina (os madeireiros ter tentado entrar justamente quando estavam todos reunidos na mesma aldeia). Ao anoitecer, um dos empregados da obra, ao embarcar, proclamou ter sido uma honra ter trabalhado nessa comunidade. Uma semana depois, no início de maio, os trabalhadores estavam de volta. O dono da empresa teria ficado contrariado com mais uma paralisação e estava determinado a terminar a obra, que já estava atrasada. O empresário argumentou que, sendo 2020 um ano eleitoral, a obra precisava ser encerrada até o mês de junho, então não havia mais como esperar passar a pandemia. Mais uma vez, afirmou que os trabalhadores todos tinham sido testados, porém, dessa vez, os indígenas estavam muito menos dispostos a acreditar na mesma história. O barco carregando os trabalhadores chegou de noite de forma inesperada, e uma discussão acirrada começou entre os Maraguá da comunidade e os empregados da obra, que afirmavam estarem apenas seguindo as ordens do seu patrão. O mesmo senhor Maraguá que havia pregado o sermão sobre a felicidade de viver no final dos tempos desatou a corda do barco da obra,[8] porém um confronto físico foi evitado. Nesse dia, porém, o cacique geral não esteve presente para conversar com os trabalhadores. Quando o primeiro caso foi confirmado em Nova Olinda do Norte, ele, junto com vários membros de sua família, começou a criar uma nova comunidade em um igarapé chamado Mereré.[9] O Mereré fica mais acima no curso do rio Abacaxis do que qualquer outra comunidade, ou seja, é mais distante da cidade do que qualquer outra comunidade já existente. Quando conversei com o irmão do cacique geral, este disse que é exatamente isso que os seus antepassados fizeram quando foram escapar da Varíola e depois do Paludismo. Isolavam-se e se distanciavam espacialmente da doença. Epidemias são com frequência descritas como existindo em uma espécie de contínuo, como se fossem novas iterações do mesmo ente e não patologias discretas. Sendo assim, agora iam fazer como os antigos fizeram e se isolar mais uma vez. No dia 7 de maio, o primeiro óbito por COVID-19 foi registrado em Nova Olinda do Norte. Muitos dos jovens e adolescentes que haviam saído para cursar o segundo grau ou faculdade em Manaus não conseguiram voltar devido aos municípios terem paralisado o trânsito fluvial de passageiros. Muitos destes começaram a contrair a doença, e pais preocupados tentavam se comunicar com seus filhos por meio de alguns poucos pontos de internet via satélite. Uma lancha da prefeitura apareceu para fiscalizar a obra no Terra Preta, o que provocou uma corrida dos moradores para longe da beira do rio, gritando que deveriam evitar aglomerações. Nesse mesmo período, algumas pessoas nas aldeias do Maruim, Pilão e Kãwera começaram a reclamar de uma virose que estaria infectando-os, mas que não acreditavam ser ‘a corona’. No dia 29 de maio, dois indígenas da aldeia São José em estado grave foram levados para Nova Olinda do Norte. Ambos os casos foram confirmados como infectados pelo novo coronavírus. Pelo mesmo nesses casos, a virose transformou-se em ‘a corona’, e logo foi constatado que virtualmente todos os habitantes do Maruim e São José estavam infectados. Durante a semana, mais quinze Maraguá chegaram da cidade somente na aldeia Terra Preta, enquanto três famílias saíram da mesma rumo ao Mereré. Algumas vezes escutei comentários sobre a ironia da situação em que se encontrava a obra. Após anos exigindo uma escola indígena do município, justo agora, quando a construção estava quase terminada, estavam todos abandonando a aldeia e se isolando rio acima. Na manhã do dia 30 de maio, após o culto em sua igreja, indígenas da aldeia Terra Preta improvisaram uma rápida reunião. Foi proposto criarem uma aldeia somente para idosos, para quem levariam comida regularmente e nenhum contato seria permitido. Os idosos, porém, não se demonstraram muito alegres com a ideia de uma quarentena indefinida. O mesmo senhor que havia feito a metáfora sobre não virar sua canoa de lado para um banzeiro refletiu com os outros sobre como esse vírus tinha começado de tão longe, lá da China, e estava chegando cada vez mais perto. A razão para isso seria a descrença, não tanto em Deus, mas naquilo que todos sabiam que deveriam fazer. Teimavam no erro e agora ‘a corona’ chegou até eles. Conclusão Enquanto espero o barco da construção vir (pois ele se tornou minha única forma de egresso do rio Abacaxis, uma vez que o cacique geral mais uma vez exigiu que nenhum Maraguá fosse para a cidade), venho refletindo naquilo que disse esse senhor. Múltiplas vezes os Maraguá tentaram fazer aquilo que era dito para eles ser o ‘certo’: tentaram impedir viagens à cidade, paralisar a obra e agora estavam mais uma vez isolando-se rio acima. Porém, essas iniciativas não eram vistas como prioridades absolutas; eram flexionadas pelas circunstâncias em que se encontravam (o motor de luz, a fome etc.). Não desdenharam do perigo da doença; ao contrário, concebem-na como a mais nova manifestação das epidemias que vêm dizimando seu povo ao longo do tempo, enquanto também a consideram como evidência do fim do tempo. As escolas estão quase terminadas. Resta saber se ainda haverá alguém morando por perto delas. Gabriel Soares, no segundo ano de doutorado no PPGAS/MN, realiza pesquisa junto ao povo Maraguá, que vive em seis aldeias no rio Abacaxis, próximo ao rio Madeira, estado de Amazonas. Gabriel se propõe a escrever uma etnografia exaustiva e inédita dos Maraguá, grupo indígena que reivindica o reconhecimento de sua identidade e de seus direitos territoriais. [1] Esse texto foi redigido durante minha estadia em campo entre os Maraguá do Rio Abacaxis ele infelizmente carece de referências bibliográficas. [2] Assistente Indígena de Saúde. [3] O benefício do programa Bolsa Família requer que o recipiente acesse o valor periodicamente. Caso o beneficiado passe um período de mais de dois meses sem o acessar, o benefício é interditado. [4] Banzeiro é um termo regional para uma ventania, correnteza ou maré. Virar de lado para um banzeiro coloca a embarcação em risco porque o ângulo perpendicular aumenta a chance do barco ou canoa capotar. [5] Terra Preta, Kãwera, São José, Pilão, Maruim, Santa Terezinha. [6] O piãguá envolve dois círculos concêntricos; o objetivo é ou empurrar o oponente para fora do círculo ou jogá-lo de costas para o chão. [7] Clãs não são mantidos por todos, mas em termos gerais os Maraguá se dividem em oito clãs preferencialmente matrilineares: Sucuri, Onça, Lontra, Gavião, Vespa, Boto, Peixe-elétrico e Mutum. [8] Desatar a corda de um barco (ou de uma rede) é como o gesto de recusa de hospitalidade por excelência entre muitos povos Amazônicos. [9] Igarapé é um afluente de um rio principal. Por dentro, Vejo uma linha. Pesco a ponta e sigo no lento. Um baixo que passeia nas minhas entranhas, Quase sanguinolento, de baixo pra cima, desenha todas as façanhas, Do infinito grave convoco minha mulher menina. De dentro pra fora, Emerge sem entrave, Faz do flow escola, antes que esse mundo se acabe! Vai ter churrasco no Planalto, para celebrar os saldos das perdas invisíveis ao fascismo, que trocou o verde oliva pelo rosa e salto alto. Nossas costas são largas, Carregamos nelas tudo o mais e a morte, Não esqueceremos, Que nos deixaram à sorte. Que esnobaram um pseudo “atleta” Sobre um povo que tem a saúde como infinita: fila de espera! Revejo a linha, (Re)pesco, tropeço, Falta respirador, Quase alcanço a ponta, Afogo-me ao lembrar, Fico tonta, Não estou no mar, Vidas esperam sozinhas a partida sem tato, Quem será o próximo rosto (conhecido ou não) A ter enterro sem abraço? Consolo à distância, Como faço? Em qual absurdo mergulhamos, me diga? Não foi o da loucura, antes fosse! Estamos na mão de um genocida! Lá fora lockdown e aqui dentro, expropriada, nua, Sem poder incendiar a esquina, Chama o Tranca-Rua! Contra tudo isso habitamos nossas fortalezas, Construções sensíveis, Ontologias que a intolerância não conseguiu acabar. Universo de destrezas, Cujo som não puderam silenciar: A linha, o baixo, o tambor, o caminho. Natália Carvalhosa vive na Zona Oeste do Rio de Janeiro. É antropóloga e Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, UFRJ. Atualmente realiza sua pesquisa junto aos refugiados da Guerra Síria que trabalham com comida em São Paulo. Utiliza-se da poesia, fotografia e música como formas de expressão. E-mail para contato: [email protected] Sobre a dificuldade de manter a esperança - [Thayná Soares de A. Vieira, PPGHCS/COC/ Fiocruz]28/5/2020
Há pouco mais de dois meses atrás, quando foi decretada a quarentena, me lembro que, sendo otimista, pensei “vai passar rápido, deve durar um pouco mais de um mês, no máximo” e decidi que tentaria manter minha rotina ao máximo. Acordar cedo, ler, estudar. O despertador tocava e eu logo me levantava, me arrumava, em alguns dias passava até um pouco de maquiagem para me manter animada. Eu, aluna nova do PPGHCS só tinha tido uma semana de aulas, estava empolgada por estar começando algo que almejei tanto. Entretanto, os dias foram passando, os números foram aumentando, se tornando rostos conhecidos e com isso levantar com o toque do despertador era mais difícil.
Entre praticamente tomar banhos de álcool em gel e estar longe de quem se gosta, presenciar todos os dias o presidente da república esbravejar contra o isolamento social e ver que tem deixado cada vez mais claro que sua resposta à pandemia não é apenas mero negacionismo, mas sim a morte da população pobre como projeto político,tem deixado tudo mais indigesto pra mim. Entrei para o mestrado com um projeto que visava tratar de medidas eugênicas no Brasil, então, quando vejo o atual presidente dizendo “que morram os vulneráveis” pois 70% da população pegaria o vírus mesmo, é muito doloroso. Isso é pior do que apenas negar a ciência: é uma linha de raciocínio muito cruel que vem me causando ansiedade e deixando pesado demais até mesmo estudar aquilo que me propus. É como presenciar um passado trágico que nunca deveria ter acontecido, que nunca deveria se repetir. Como aluna de um programa de pós graduação em história da ciências assistir esse descaso com a ciência tem sido difícil e tem tornado complicado manter a esperança vendo tanta gente defender essa crueldade em favor de se manter a economia, enquanto estamos preocupados em casa e com saudade das pessoas que amamos. Acredito que seja bom compartilhar essas angústias, para notarmos que mesmo distantes, não estamos desacompanhados e sozinhos, que podemos manter nossas redes de apoio mesmo em meio a toda essa loucura que nos faz a cada diz ter que reinventar e ressignificar as formas de se estar junto, de demonstrar afeto. É bom compartilhar o que sentimos e ver que ainda existem pessoas que se importam, que não compactuam com a crueldade. Estamos cansados, com saudades. É tudo tão estranho. Nos resta apenas tentar atenuar a falta que o contato humano nos faz através da tecnologia. Tentar nos manter fortes. Tentar nos manter esperançosos. E acreditar. Acreditar que tudo isso vai passar e vamos poder voltar a normalidade do encontro com os amigos, dos abraços, da vida como deve ser vivida e que nos foi de certa forma roubada. São Gonçalo, 23 de maio de 2020 Thayná Soares de A. Vieira. Mestranda em História das Ciências e da Saúde do Programa de PósGraduação da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. Atualmente estudo as propostas de exames pré-nupciais enquanto uma medida eugênica de controle matrimonial no Brasil no período de 1914-1934. Email: [email protected]. Já tenho quatro meses em um lugar estranho,
Estranho porque não estou em meu lugar, Lugar que traz a tranquilidade das minhas origens, Onde lembro que um dia me abriguei! Esse tempo que aqui estou passando me fez voltar a minha infância, ao lembrar de um lugar que só eu sei. Só buscava esse lugar por medo, um buraco de barro que sempre trazia um esconderijo, Esconderijo que abriga alguém sem lugar, Lugar onde encontrei segurança como minha única opção. Opção a que o medo me empurrou. Medo de um barulho estranho vindo de algum lugar, Lugar que não tinha nome, porque não se tinha uma direção. Ouvia-se um barulho estranho, como o zumbido de uma colmeia de abelhas. O que será? pensando em um zumbido violento como o do trovão! Lembro como se fosse hoje. Era de um avião imenso que passava em cima de um rio, Um zumbido grave estranho parecendo roubar violentamente o espírito de alguém. Alguém precisou estar bem encolhida como se estivesse dentro do ventre. Terra amarelada, com raízes de açaí e folhas de ingazeira miúda. Miúda, mas dava sombra às crianças que tomavam banho de rio. Rio violento na época da enchente, Enchente trazendo doenças do mundo para aldeia, Aldeia cheia de famílias indígenas que não sabiam o que estava por vir. Vindo de um lugar também sem direção, o que será que vinha? Vinham doenças que causavam desconfortos aos corpos, Corpos que não sabiam expressar a dor dentro de um corpo. Corpo que alojava um vírus estranho. De tão longe sem ter nenhum buraco de terra para se esconder, Esconder não era opção que tinha, porque a terra estava coberta com algo estranho, Estranho parecendo couro de Sucuri. E a angústia de estar dentro de um lugar inseguro, frágil E medo de ser engolida por um vírus fantasma sem identidade. Vírus que me trouxe dias sem dormir com medo do amanhã, Amanhã que talvez não poderia existir, porque não pertence a mim. Não pertencendo a mim, procurava me encolher dentro de uma parede, Parede que me traz uma certa insegurança por ser um lugar aberto. Esse lugar aberto me causou muitas dores da perda, Perda de amigos, conhecidos, parentes, vizinhos, familiares. E hoje o que nos resta? Restam cacos, pedaços de cerâmica deixadas à beira do caminho, Caminho parecendo não ter fim, impedindo a volta às minhas e nossas origens, Origens não só de aldeias, mas da vida de muitos que esperam com ansiedade. Isabel de Oliveira Dessana é antropóloga e Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, UFRJ. Pesquisa sobre as tecnologias digitais e de mídias sociais e suas influências aos povos indígenas do Alto Rio Negro, desde a sua introdução na região. Investiga como os afetam e quais suas vantagens e desvantagens, seja no campo social, político, educacional, cultural e econômico. Completando três meses e alguns dias nessa quarentena interminável, após mergulhar a cara nas mídias sociais para me informar ao máximo possível sobre os últimos acontecimentos nesta cidadezinha pacata do interior do Amazonas, nas confluências da tríplice fronteira, onde ainda me encontro devido ao surto da pandemia do Covid-19 no Amazonas, e principalmente em todo o trapézio amazônico, penso sobre essa doença que atinge grande parte da população urbana e principalmente os povos originários que habitam essa região, como os ribeirinhos, e também as comunidades tradicionais não indígenas, que se localizam às margens dos rios Solimões e javari. A situação se agrava diariamente, com informações de mais casos confirmados, em sua maioria destas populações, que sofrem com a falta de estrutura médica e social nesta área que está sendo arrasada pelo covid-19. Ia eu fazer minha pesquisa de campo numa aldeia Ticuna de outro município vizinho, mas só fiquei a ver navios, ou melhor, usando-me de um termo mais regional, só fiquei de “bubuia”, pois não posso sair até que toda essa situação seja reparada. Logo no início, quando cheguei aqui nesse “fim de mundo”, também pensei como a maioria dos conterrâneos da tríplice fronteira, que essa doença não iria nos alcançar e que, se chegasse, não seria com tanta força. Fazer o que, foram tomadas medidas tardias demais, pois as autoridades competentes demoraram muito em decretar lockdown. Depois de me convencer de que realmente era necessário alertar as pessoas da gravidade da situação que estava se aproximando, tomei a liberdade de falar com o máximo de pessoas vindas do Peru e Colômbia para evitarem transitar de forma constante nos rios. Mas para compreender por que até este momento o fluxo de idas e vindas dessas pessoas ainda está acontecendo, mesmo com todos os decretos e medidas tomadas pelos municípios e adjacências, faço aqui uma reflexão em poucas linhas, passo a passo. Fonte: arquivo pessoal. Cumprindo a quarentena ao lado dos meus, torcendo para que os dias tenebrosos passem logo. Hoje me encontro preso em casa sem saber ao certo como estão essas pessoas que são parte de mim, ou, como dizemos na nossa língua, dau'cuenacüãgü (os de cima), e dói saber que as políticas públicas, de quem tanto enchem a boca para falar em tempos de política não estejam adiantando quase nada numa tentativa de conter um vírus que já está por toda a tríplice fronteira e que infelizmente chegou com muita força entre as populações originárias do famoso “pulmão do mundo”. As prefeituras municipais, juntamente com outros órgãos competentes, como a Policia Militar, Guarda Civil Municipal, Exército (“braço forte, mão amiga”), Aeronáutica, Marinha e também o famoso Dsei (Distrito Sanitário Especial Indígena), têm tentado conter “a todo custo” a propagação desse inimigo invisível, que a maioria no início estava tratando como uma “gripezinha", assim como nosso próprio governante afirmou em seu discurso. Muitas aldeias e comunidades ribeirinhas abandonadas à própria sorte por não ter uma assistência correta, ainda pedem para que essas mesmas pessoas fiquem em suas casas e parecem se esquecer de que essas pessoas necessitam, todos os dias, sair bem cedo de suas casas para buscar algo para dar de comer aos seus filhos e familiares. Quando não é isso, têm que se deslocar para os centros urbanos atrás de insumos que não existem nas aldeias, como açúcar, sal, laticínios e materiais de necessidade básica que só se encontra nos municípios, já que nem todos conseguem ser contemplados com as cestas básicas, pois há lugares de muito difícil acesso, e infelizmente nem todos são alcançados. E como esperar pelo governo na maioria das vezes é perda de tempo, acaba se tornando necessário vender sua força de trabalho em troca de ter o que comer no dia seguinte. Precisam trocar primeiro seus produtos por cédulas de papel para poder comprar o que precisam, mesmo com os preços abusivos que os patrões estão cobrando em seus estabelecimentos. Afinal de contas, aqui já estamos vivendo em cenários de filmes de ficção cientifica sobre o fim do mundo, em que quem tem oferece, e quem não tem “se vira nos trinta”, pois agora é tudo pela demanda e oferta, e não se pode deixar o capitalismo morrer. Não há para onde correr: ou se morre de fome ou de coronavírus. Não há muita escolha, já que nas aldeias a produtividade das roças e chácaras não tem sido mais em grande quantidade como antes e não se tem mais tanto peixe ou animais de caça em abundância, como antigamente. Mas agora já há “ajuda” do governo – pelo menos é o que dizem. Fonte: foto registrada por um funcionário publico, de aglomeração permanente no porto de Tabatinga – AM, município que faz fronteira com Leticia – AM, Colômbia. Pensou-se em oferecer, como sempre, “migalhas” para toda a população para acalmar os ânimos das “minorias”. Como sempre, oferecem-nos “pentes e espelhos". Chegado o dia de receber o “auxílio emergencial” (auxílio paletó de madeira), o que se presencia são filas enormes que dão do início da porta da única casa lotérica que existe no município até as ruas que dão acesso ao mesmo, e se encontram citadinos e ribeirinhos disputando por uma vaga para poder botar a mão na grana que vai ajudar a tirar a barriga da miséria por alguns dias, se for usada corretamente. Como de costume, o fluxo das populações nativas é constante nos município. Se há algum auxílio ou promessa de ajuda de políticos ou de acesso a algum benefício, chega-se a contagiar todos, atraindo-os cada vez mais às áreas urbanas de grande proliferação da doença. Entre risadas e brincadeiras, ouve-se “só quero garantir o meu" da parte dos “civilizados”, que ainda não se convenceram da seriedade da situação, mesmo com algumas mortes já confirmadas por coronavírus. Debaixo daquele sol escaldante, aglomeram-se quem mais foi afetado com isso até agora, nós ticuna, e também nossos parentes Kokama, entre outras etnias que vivem às margens dos rios. Tais populações já perderam vidas pelo contágio do coronavírus por não cumprimento de decretos sancionadas pelas autoridades pedindo para que se aquietem em casa, pois são um “bando de selvagens” mesmo, que não sabem obedecer os decretos municipais – são os discursos de alguns que estão na linha de frente. Pensassem eles como é difícil trabalhar com “parentes", pois cada um tem sua especificidade, devido a diferentes formas de contato no passado e também por ser um fato inédito para eles, pois muita gente ainda nem sabe sequer como lidar com tudo isso. Onde está o atendimento diferenciado? É só mais uma falácia, pelo visto. Não tem sido diferente nos municípios vizinhos, com aglomerações constantes nos portos, nos estabelecimentos comerciais e, principalmente, nas agencias bancárias, lugares que viraram os piores inimigos para a saúde das populações amazônicas, contribuindo ainda mais com o número crescente de infectados e causando mortes aos montes. Fonte: TV Fronteira O Tambaqui. Imagem do primeiro dia da população realizando o primeiro saque do Auxílio Emergencial, no município de Benjamin Constant – AM. Isso me levou a pensar numa outra medida que parecia resolver o problema da maioria dos estudantes brasileiros, já que não se sabe quando vamos poder voltar para as salas de aula. Ofereceram então aulas online, educação a distância e tal, coisa que não é novidade para ninguém que vive próximo a uma grande metrópole ou pode se dar o luxo de acessar uma boa rede de internet. Talvez faltou um pouco de, ou muita, aula de geografia aos nossos “representantes”. Será que eles se esqueceram de que estamos no “fim de (o) mundo”? Mal sabem eles que aqui as coisas funcionam a passos largos, na mesma velocidade do andar de um jabuti. Alguns lugares nem sequer escola têm, quanto mais acesso ao mundo globalizado. Durante os anos que acompanhei alguns trabalhos da FUNAI (Fundação Nacional do Índio), me deparei com uma realidade que os municípios tentam esconder, e que maquiam muito bem para que no final do semestre saia tudo perfeito com todos os alunos aprovados. Situações que ainda permanecem ate os dias atuais. O acesso à informação ainda se dá através do deslocamento dessas populações aos centros urbanos, visto que ainda não há redes de comunicação próxima, e isso dificulta ainda mais saber o que e como estão ali do outro lado e quais medidas já foram tomadas. Tem-se feito pouco caso, sem diferença alguma de onde me encontro. Por outro lado, o fanatismo religioso entre as populações indígenas também tem causado muitos malefícios no meio de muitos. É certo que a forte atuação da Igreja Mundial do Poder de Deus entre o povo ticuna tem contribuído com a rápida proliferação dessa doença em todas as áreas onde habita o meu povo. Foi noticiada nas mídias uma ocasião em comemoração ao dia das mães, em que se encontravam pessoas oriundas da tríplice fronteira. Pois o mesmo pastor dessa igreja convenceu a maioria dos ticuna que isso é uma doença só dos “brancos", e que quem tiver Deus no coração não irá passar por essa provação. E a situação segue presente até o momento. Onde estão nossos “defensores" quando mais precisamos deles? E onde nós nos encontramos em tudo isso, quando o caldo está cada vez mais engrossando para o nosso lado? A resposta é simples: no mesmo lugar onde sempre estivemos desde o início da conquista destes territórios, em último plano, pois assim como as vidas dos “favelados” nos grandes centros urbanos, nossas vidas valem menos do que a deles (tomagü). Teria sido bom se nunca tivessem chegado aqui, assim não estaríamos tendo nossas vidas sendo ceifadas por doenças que não são do nosso mundo. Lembrei-me das histórias que meu falecido avô me contava sobre alguns males que eles vivenciaram no passado, quando eles tinham que se isolar nas áreas mais longínquas possíveis para se abrigar e se proteger. Talvez era o que eu devia ter feito logo no início, mas infelizmente os tempos agora são outros. Talvez seja essa “a queda do céu” de que o parente Davi Yanomami havia nos alertado, ou a terceira guerra mundial. Já vejo cruzes em algumas portas, boatos de feijões mágicos que curam, cabelo encontrado em bíblia como formas de se salvar e até anúncios do apocalipse nas bancas de gasolina. E meu povo, como sempre, tentando ir atrás de um salvador que ainda não chegou, desde o dia em que ele levou consigo o mundo encantado, onde tudo era possível somente com a força das palavras, e nada se conhecia de doença dos alienígenas que aqui chegaram e nos fizeram brasileiros, peruanos e colombianos, e que dizem que todos estamos no mesmo barco. Talvez a canoa esteja cheia de furos e faltando estopa para calafetar as brechas. Ouvimos notícias de que há gente atravessando as fronteiras só para espalhar a doença. Não sei até que ponto chegam a ser reais estes boatos (mas tudo é possível). Noticiam casos confirmados em agentes da frente de combate, que seguem trabalhando assim mesmo, oferecendo mais risco ainda à própria vida e à dos demais. Vivemos em uma negligência total de nosso direito pela vida e numa total idiocracia. Fonte: Arquivo pessoal: Na foto, trânsito diário de pessoas no porto de Leticia – AM (CO), quando a necessidade fala mais alto do que o medo de ser contaminado pelo covid-19. Hoje de manhã, enquanto ainda escrevia, me vem a notícia de que na aldeia da minha família materna, no Peru, sofremos a primeira perda de um tio meu que, na ultima vez em que estive de visita na aldeia, encontrava-se em ótimas condições físicas e mentais. Com a idade já meio avançada, sendo classificado como pertencente ao grupo de risco, veio a óbito, e os outros também se encontravam doentes, como minha vozinha querida, mas me alegrou saber que já estavam se recuperando, com tratamento das nossas próprias medicinas da natureza. É necessário que o trabalho de formiguinha não pare. Eu, daqui; você, daí, vamos conscientizar nossos próximos, principalmente nossos anciãos, para que no amanhã tenhamos com quem aprender, para seguir ensinando nossas histórias às nossas futuras gerações, que nem fazem ideia, na maioria das vezes, do que está acontecendo no mundo. Queria eu que tudo isso não passasse de um sonho, mas todo dia, quando acordo, deparo-me com mais notícias pesadas para qualquer ser humano, principalmente quando as noticias se referem ao povo ticuna, do qual faço parte. A sensação de revolta é maior que a de dor, pois não se sabe ao certo se os recursos que foram liberados para atender a essas populações em fase emergencial, como o meu povo, estão sendo de verdade aplicados. Mas uma coisa é certa: como dizem meus mais velhos, “quando a gente magüta desaparecer, o mundo inteiro irá se acabar”. Fonte: Arquivo pessoal. Cuidemos das nossas crianças, pois a esperança mora nelas.
João Ramos é antropólogo ticuna e mestrando. Faz pesquisa sobre as perspectivas cosmológicas e ritualísticas do povo magüta (ticuna), na região de tríplice fronteira, povo ao qual pertence. Cara amiga,
Você lembra da última vez em que a gente se viu? Num boteco qualquer, sem prestar nenhuma atenção para quantas pessoas cabiam ou não na rua, se havia a distância de dois metros entre elas, passamos horas falando, decifrando, comentando, acusando. Faz muito tempo que não falo assim. Tenho a impressão de que a contradição entre o quanto falávamos, esperando o dia amanhecer, e a escassez de opções e asseio do boteco fosse proposital, como se o lugar falasse: oferecemos pouco para que vocês encontrem muito – conversem. Foi em bares assim que fortalecemos nossa amizade e colecionamos palavras, conceitos, críticas, posições. Agora que nós mesmos nos tornamos escassos, as palavras parecem minguar. Lembro com carinho os movimentos da mesa; uma dança de mãos e gestos que carregavam palavras para vislumbrar o contorno do mundo e dos seus movimentos. Entre uma reflexão informal e xingada sobre o que há ou não há, ou o que deveria existir, as mãos gesticulavam, pediam um isqueiro; ou alguém puxava o pacote de tabaco, ou tirava mais um cigarro do maço, que invariavelmente sempre estava acabando. Claro, toda essa série de movimentos, como tantas outras coisas, foi varrida pela pandemia. No intervalo de poucas semanas, entramos numa nova configuração das coisas, dos discursos, dos medos, principalmente dos movimentos, os quais só consigo identificar como: isso tudo aí. Você perceberá a ironia, imagino. Junto com aquele mundo que se foi, parece que se foi também a linguagem para descrevê-lo. Virei mudo, amiga. Não consigo discernir o mundo que está tomando vulto e o mundo de antes parece ter sumido sem nem um suspiro. Treinado anos a fio para (um dia, nos diziam) ser pago para falar sobre o mundo, percebo que não sei mais falar dele. Tomado por uma certa afasia fenomenológica, a minha escrita sobre o que está acontecendo tenta tomar outras formas, mesmo se precárias e cambaleantes. Tenho ao meu lado um diário, no qual, entre outras coisas, anoto meus sonhos. Agora, são marcados pela sensação de um retorno constante – permeados por ameaças físicas ou pelo reencontro com antigos amores, sempre acordo deles com o medo de que estou recebendo uma mensagem extraordinária, mas indecifrável. Às vezes acordo e, olhando para as mãos raladas de tanto serem lavadas, penso, “ah, então esse aqui sou eu”, como se, junto com a desconfiguração do mundo, eu também fosse perder meu contorno. Ou talvez eu finalmente esteja apreendendo minha própria forma – como diz o Evangelho, “os tempos da restauração de todas as coisas de que Deus falou...” Escrever no diário, sempre uma atividade noturna, acompanha outros rituais cada vez mais sussurrados. Vou para a varanda e fumo um cigarro. Sem camiseta, sento na cadeira da varanda, satisfeito de poder sentir a chegada do inverno e da seca. Seguro a respiração e tento ver se meu fôlego está bom. Logo depois, penso na ironia que é querer encarar uma doença respiratória fumando. Às vezes, rio sozinho. Tomo esse tempo como minha prece final do dia. Às vezes, falo; às vezes, não. Tento me ater ao conselho de Yamamoto Tsunetomo: “Deve-se meditar sobre a morte inevitável diariamente.” Tento me imaginar dentro daqueles sacos plásticos pretos, ou em caixões jogados numa vala comum, aterrados no lodo tropical de alguma cidade brasileira. Olho para fora e espio as constelações que ainda reconheço. O Escorpião está lá, por cima do prédio, e ainda consigo ver a pontinha do ferrão dele. Enquanto o cigarro queima, também viro para minhas plantas, entre as quais as mais novas são os alhos que brotei num copinho de água. Converso com eles, com as duas orquídeas. Arranco a pontinha de uma das folhas do alho e boto na boca. Percebo que também tem gosto de alho. Coço a barriga; acho que engordei. Tudo terminado, entro para dentro, escovo os dentes, deito-me. Uma noite dessas sonhei que estava numa cachoeira lá na chapada. Como outras que temos por aqui, essa também era feita do encontro de pedra bruta, cor de ferro e ocre, com a água gelada e antiga do cerrado. E em volta dessa comunhão antiga crescia a aroeira, a canela-de-ema, o chapéu-de-couro, a lobeira; nos galhos e nas copas, cantava o melro, o tico-tico, o canarinho-da-terra e o joão-de-barro. Tinha me afastado dos meus amigos e estava nadando numa seção do rio que era fechada pelos cânions de rocha. Eu olhava para os cantos, buscando sinal de atividade ou de presença humana e não encontrava nenhum. Deixando aquela água escura, cor de chá de barbatimão, levar-me por entre os paredões, imaginava ser o primeiro, ou talvez o último, ser humano a passar por lá. Naquele mundo mudo e surdo de fala de gente, eu dizia uma prece qualquer, introduzia uma voz humana no meio daquele borbulho primeval e depois ia embora. Ele voltava a ser silencioso de novo. De alguma forma, parecia ser uma redenção não ter que fazer sentido de um mundo, poder entregar seu início e fim para outras forças, outras criaturas, outro tempo. Ao contrário de hoje, em que o momento nos urge à ação, mas estamos presos em casa. Amiga, como são tristes nossos tempos! Que monstros são esses que nos atacam? Juro que se tivesse alguma resposta para isso, estaria escrita aqui. Mas não tenho. De qualquer forma, talvez seja bom por enquanto nos mantermos no silêncio. Acho que são impacientes aqueles que condenam o silêncio à apatia. Prefiro pensar que ele é, em parte, o início de uma grande greve espiritual da nossa geração. Estamos nos retraindo para as paisagens arruinadas dentro de nós, territórios abandonados a fio enquanto o mundo zumbia lá fora. Olhando bem agora, que temos um pouco mais de tempo, você não se lembra de como antes estávamos cansados? De como vivíamos em meio a um colapso mas era proibido – pelo otimismo desesperado de alguns, pelo cinismo de outros – chamá-lo pelo seu nome? As coisas estavam bem antes? Não, não estavam. Este momento de crise nos impele a uma decisão. Dois mil anos atrás, no canto do maior império que a Terra já tinha visto, um homem chamado Jesus decidiu passar quarenta dias no deserto. Sabia que no deserto as legiões não o alcançariam. Lugares assim geralmente rechaçam a arrogância imperial. Lá, como Moisés no Sinai, buscou falar com Deus e purgar-se de suas fraquezas. Foi tentado pelo Demônio, que o ofereceu, acima de tudo, um novo império. Sábio e forte, Jesus negou a oferta, ciente de que no final, até um imperador torna-se sacrifício para a fome de um Leviatã. Como o Mestre, também vivemos no fim de algo, amiga. Assim como ele, também estamos num deserto, numa quarentena física e espiritual. Então agora seria uma boa oportunidade para nos despirmos de toda a armadura que deixamos crescer em volta das nossas almas. Como tanto tempo atrás, naquele canto esquecido do império romano, surgem vozes do deserto, e que ressoam dos interiores esquecidos, das planícies abandonadas. Antes fracas e distantes, hoje elas são mais numerosas e próximas. Dizem: “o tempo de Roma se está acabando”; “o reino de Deus está próximo”, “este século não passará”. Nem todas são amigáveis, e no deserto vivem tanto profetas quanto charlatões. Caberá a nós, em silêncio ou no grito, decidir quais vozes ouvir. Até lá, talvez o tempo quieto, que contraria o ruído da transmissão ao vivo do desastre, nos lembre daquilo que é fundamentalmente bom. Pois Deus fala no quieto. E ele diz: “filhos, a Terra é a sua mãe, e ela é bela”; “dividir, multiplica”; “num pôr do sol, no canto sonâmbulo de um bacurau ou num dia passado junto com um amigo, nessas coisas mesmas brilha meu Reino; ele está distribuído pela Terra, mas os homens não o veem mais”. Espero que estas palavras lhe tranquilizem. Termino esta carta contando outro sonho. Como o Reino do Criador, é um sonho que tem mil formas e que viceja sobre toda a Terra, dentro e fora de nós, inundando nossas almas de alegria toda vez que vivemos a liberdade. Ele é como a mostarda de semente, que “cresce e se torna maior do que todas as hortaliças e deita grandes ramos, a ponto de as aves do céu poderem aninhar-se à sua sombra.” Tente mantê-lo próximo. O sonho é algo assim: Imagine que, passada a nossa época de tragédias, as pessoas no mundo serão do nosso sangue, do nosso cabelo, do nosso osso e da nossa pele. Ao redor das suas fogueiras, talvez contem lendas antiquíssimas sobre nós, a quarta ou a quinta humanidade, que acreditou ser um deus, ou um demônio. Ocasionalmente, talvez ao caminhar no final da tarde por paisagens totalmente desconhecidas, venham aos seus sábios imagens atávicas dos infernos que vivemos e das grandes catástrofes que se romperam por cima das nossas cabeças. Tomados por esse golpe de mágica, ouvirão gritos de crueldade e ódio, mas também histórias de grande coragem e amor, das enormes proezas conquistadas pelas multidões. Serão acometidos por um grande terror ao ver essas coisas. Mas será apenas uma memória. Erguendo-se, continuarão seu caminho de volta às suas aldeias e acampamentos, onde há sempre uma lareira queimando e a gente é feliz, porque sabe que, afinal de contas, foi tudo um pesadelo e que, como todo pesadelo, ele também chegou ao seu fim. Espero que nos vejamos em breve. Seu amigo, Felipe Moretti pesquisa os movimentos de Caldeirão e Pau de Colher, que se deram na década de 30 no Sertão nordestino. Interessa-se sobre como seus discursos podem oferecer-nos outras visões sobre a relação entre o humano, o divino e as temporalidades associadas ao fim do mundo. Acredita que, olhando assim para este passado recente e que foi violentamente destruído pelo Estado Novo varguista, possamos encontrar respostas para as questões dos nossos tempos, também assombrados pela mudança climática global e o colapso de regimes geopolíticos estabelecidos. Pensamientos nostálgicos de un Warmipangui Kichwa Canelos de la amazonía en tiempos del covid-19
Estaba consciente de que la madre tierra estaba enferma, había dado señales de ello. Mediante lluvias intensas y sequías en algunas partes del mundo, estaba llamando la atención para que el hombre tome conciencia de su accionar al explorar los recursos naturales que ella nos ofrece. A inicios del dos mil veinte, me consideraba la persona más feliz y dichosa del planeta, porque iniciaba el tercer año de estudios para culminar mi doctorado en Antropología Social en el Museu Nacional/UFRJ, y también porque estaba con mi compañero de vida que había viajado conmigo para hacerme compañía mientras tramitaba mi residencia en Rio de Janeiro. En marzo, iniciaría clases. Habíamos hecho planes para estar juntos y disfrutar nuestro tiempo, ya que mis estudios e investigación de campo habían cambiado nuestra forma de vida; así que pensábamos aprovechar al máximo el corto tiempo que nos quedaba antes de que él retornara a Ecuador. En diciembre del dos mil diecinueve, escuchamos en las noticias que en Wuhan/China había surgido una nueva gripe y que se estaba saliendo de control. Nunca pensamos que alcanzaría tal magnitud, como para parar a todo el planeta. China, para mi, es un país mágico y lejano. Como tal, solo existe en mí imaginación. Con el pasar del tiempo, fuimos escuchando que aquel virus se esparcía incontenible y se elevaba a categoría de pandemia. Los no indígenas de los países “desarrollados”, como se consideran, se jactan de su avance tecnológico en medicina, así que imaginé que para antes que llegase esa amenaza a estas tierras, “en proceso de desarrollo”, la iban a lograr controlar. El tiempo iba pasando, y en un abrir y cerrar de ojos, ya había casos en América del sur. Si la mente y la difusa información no me engañan, fue Ecuador donde se registró el primer caso. El mundo se había puesto en alerta. Estaban cerrando aeropuertos, vías terrestres y marítimas. La nueva gripe, a la que en primer momento le nombraron coronavirus, tenía los mismos síntomas iniciales que la gripe común, solo que más fuerte y letal. Podía causar la muerte en un tiempo récord. Algunos presidentes no le dieron la debida importancia, como sucedió en Estados Unidos. Su actual presidente, Donald Trump, expresó que “solo es una gripecita”, a la que no había que tenerle miedo y no iba a parar todo un país. Una clara declaración de un capitalista, que solo piensa en los resultados económicos con los que se le va a medir, y no en la seguridad de todo el planeta. Escuchamos que Ecuador también estaba tomando las medidas sanitarias recomendadas por la Organización Mundial de Salud (OMS). Y que en Sao Paulo, se había reportado el primer caso. Mi compañero se puso nervioso, y yo también, porque, según los médicos, la nueva gripe era mortal para niños y personas mayores. Y él entraba en el grupo de riesgo. Sentí miedo, pues estábamos lejos de nuestra casa y de la familia. Además, me sentía responsable por él, ya que, si algo le pasaba, sería toda mi culpa. Y no me perdonaría. Porque fue por mí que él viajó. Además, que le diría a su familia. Me propuso adelantar el retorno a Ecuador porque estaban cerrando las fronteras. Cuando me lo preguntó, la tristeza invadió mi ser. Pero no expresé lo que estaba sintiendo por dentro y concordé con su propuesta, ya que no quería que él se sientiese triste o culpable por dejarme solo en Rio de Janeiro. La última noche juntos, no pude controlar mis sentimientos. Y el dolor se convirtió en rabia. No quería que se fuese. Pero no podía hacer nada. Así que dormí alejado de él. La vida me ha enseñado a mostrar una cara alegre y de bienestar, sin expresar dolor, aunque por dentro esté destrozado. Once de marzo. Fui a mi primera clase de Antropología de la Sexualidad, para madurar mi reflexión sobre el tema que estoy estudiando, el cual se desarrolla sobre Género y Sexualidad, enfocado en la homosexualidad indígena. Pensé que retomar las clases en el PPGAS me ayudaría a distraer mi mente de las penas que había vivido. Además, estaba rebozando de felicidad, porque me encanta el tema que íbamos a estudiar. Pero mi felicidad duro poco. Días después de las clases introductorias, el país entró en proceso de cuarentena. El virus minúsculo, pero mortal, había llegado a tierras cariocas. Suspendieron las clases sin establecer una fecha para retomarlas. Y, para asfixiar más mi ser, entraba un decreto de ley prohibiendo que las personas saliesen a la calle. Al día siguiente, desperté ansioso y sofocado. Pensamientos del pasado entraron en mi mente, y me di cuenta de que estaba lejos de los míos. Mi pareja se acababa de ir. Mi familia estaba lejos. No podía verme con mis amigos para distraerme o conversar sobre nuestros objetos de estudios en algún lugar de la ciudad, metidos dentro de una cafetería o en algún bar de las calles animadas de Rio. La depresión estaba tocando la puerta de mi casa. Sí no hubiera sido por mi amiga indígena, Dessana Isabel, hubiera dejado entrar a la depresión. Ella me ayudó con su compañía. Además, mi compañero y familiares estaban en constante comunicación conmigo, lo que me dio fuerzas para continuar. Recibí el correo de la Profesora María y mi orientador João de la disciplina Antropología Histórica y Etnohistórica, en la cual indicaban que las clases no se iban a interrumpir, solamente se iba a cambiar de método. Íbamos a usar herramientas tecnológicas para tener clases virtuales. Me puse feliz. Así, no iba a estar aislado leyendo y escribiendo solo en mi cuarto. Ahora se me presentaba la oportunidad de dialogar con mis otros colegas de estudio y, por lo menos por la pantalla del computador, verlos. Pasaron los días. Hasta cuando se recibió un correo de la Pro-rectoría PR2 de la Universidad Federal de Rio de Janeiro. En la nota, se decía explícitamente que se prohibía tener clases on line. ¿Porque hacían eso?, pensé. Pero enseguida me dí cuenta que no todos los estudiantes tienen una computadora en sus casas o acceso a internet. Es la otra cara de Brasil. María y João nos preguntaron si queríamos cancelar las clases on line o cambiábamos a un grupo de estudios sin carga horaria. Todos aceptamos. Y continuamos nuestros encuentros, todos los viernes, a la misma hora y por el mismo canal, el Zoom. La cuarentena está siendo difícil de sobrellevar para mí. Estoy lejos de mi entorno, de mi familia y de mi compañero. A veces, despierto con miedo y rezando a mis ancestros, para que nada malo les pase a ellos ni a mí. Porque si la muerte nos visita, a alguno de nosotros, no tendría la oportunidad de despedirme de ellos y verlos por última vez antes que retorne a las entrañas de la madre tierra. Pero las reuniones con mi grupo de estudio, mi amiga Isabel, mi compañero y mi familia me ayudan a distraerme y llevar una vida más o menos “normal”. Pero a veces la nostalgia entra en mi mente, y pienso en mi madre, mis hermanos y compañero. Recuerdo cuantos momentos felices viví junto a ellos y en mi interior exclamo “¡Daría todo por cinco minutos con los míos!” Solo espero que este virus ayude a reflexionar y repensar sobre la sobrexplotación del planeta… Sobre el autor: Mi investigación está en la línea de Antropología de las minorías, concerniente a Género y Sexualidad, enfocado específicamente en discutir y analizar la homosexualidad indígena Kichwa Canelos de la amazonía ecuatoriana. E-mail de contacto: [email protected] escrevo para descarregar a tensão cotidiana. para tirar do meu corpo todo o peso dessa sobrecarga de medos e incertezas, que desgasta minhas emoções e mina minha saúde mental. mesmo que escrever seja esse ato de sobrevivência que me permite sentir leveza pelo menos na hora da escrita, do descarrego, ele não vem mais acontecendo durante esta pandemia. às vezes, busco sair de mim nas diversas atividades que posso vir a fazer dentro de casa. é verdade que também tento fugir de mim. estaria sendo hipócrita se não falasse sobre isso. afinal, num momento como este, o que a gente menos quer é estar aqui.
apesar dessas sensações diárias, que se repetem de maneiras tão exatas, busco olhar para esse momento e tentar acreditar que, quando tudo isso acabar, as coisas podem vir a melhorar. e não: antes de qualquer coisa, quero dizer que isso não se trata de tirar coisas boas desse momento. na verdade, a conjuntura só escancara nas nossas caras, por todos os meios possíveis, os nossos limites e os nossos fracassos como uma tal “humanidade” que foi elaborada e pensada por poucos, que não trata de todas e todos, mas apenas de uma certa parcela interessada nessa ideia que foi universalizada. é exatamente por isso que tendo a me assegurar de que, depois daqui, algumas coisas já não vão ser mais como eram antes. nada mais será como era antes, mesmo com a existência daqueles que tentam negar essa realidade e que apelam para uma ideia de “normalidade”, que também já não existe mais. o que é normal? o que era normal? e para quem?... os limites e fracassos desses projetos de sociedades e o que nós podemos fazer com isso são o que me permitem ficar de pé e me devolvem um pouco de sanidade e fé nas mudanças. isso porque, apesar dessas reflexões e sensações e modos de lidar dizerem respeito ao lugar social que estou ocupando no momento, às possibilidades de me manter em casa e de ter um certo recurso financeiro – que, por mais abaixo do que deveria ser, ainda me permite ter uma qualidade de alimentação melhor do que a que eu tinha antes, e do que muitos e muitas têm hoje –, e para além das demais problemáticas existentes que podem desembocar deste discurso, eu consigo sentir as transformações e a emergência de reflexões e propostas de alternativas a esse caos político-sócio-cultural-econômico-biológico e ambiental que estamos vivendo. são as apostas na solidariedade entre as diversas comunidades e coletivos que buscam se apoiar nesta crise e suas alianças, o envolvimento de milhões de pessoas que, por vários anos, décadas e gerações se distanciaram da esfera política por desprezo e não credibilidade e que agora estão se mobilizando para ajudar os seus semelhantes e seus diferentes, que me fazem ainda ter uma certa esperança. cabe destacar que não falo de “ajuda ao próximo” no sentido cristão – a quem servir esta ideia, que se apegue a ela para fazer algo. mas quando trato de ajuda ao outro, digo no sentido de se sentir responsável pela continuidade de vidas que não só as suas. e são esses esforços e o surgimento e a emergência de tantos outros que me fazem passar por esse momento, quando não estou vivenciando as sensações ruins que descrevi no começo deste texto, de forma mais consciente, estável e sã. espero que isso ajude a vocês a encontrar um feixe de esperança e de força em meio a tudo isso que estamos vivendo. sei que muitas são as possibilidades de interpretação para além do que eu descrevi aqui, e que as mesmas tendem a nos levar para um lado mais pessimista e angustiante. entretanto, uma coisa que essa quarentena nos ensinou é que é preciso nos apegarmos a algo para conseguir atravessá-la da forma menos adoecedora possível. e é isso que estou fazendo. tentando me manter confiante, por mais que eu ainda sangre todos os dias. Zwanga Nyack é mestrando em Antropologia Social do PPGAS/MN/UFRJ. Atualmente estuda a produção de conhecimento antropológico sobre relações em alguns programas de pós-graduação do Sudeste do país. E-mail: [email protected]. Local de residência: Fortaleza/CE - Brasil. De repente,
As portas que se abriam diariamente Se tornaram janelas que ventilam a casa. A casa: Um microcosmo do Mundo. Reflete os anseios de seus habitantes, Os desejos aflitos, Esperando por tempos cambiantes. Essa é a nossa sentença: Sermos integrados novamente à natureza. Essa natureza que foi idealizada, possuída Renegada... E não há contos nem poesias o suficiente Para restabelecer o equilíbrio da mente. Em formas diárias e paradoxais de quarentena, Ando reclusa, pensativa, para além dos muros que nos separam. Devidamente. A humanidade vai se reinventando sem perceber, Um novo normal que vem nos amanhecer, Penetra lentamente sobre o universo dos sentidos, Os olhos atentos, a boca ansiosa e o corpo cansado de viver novos dias contidos, Contados. Eu busco a saída nas palavras Que leio, que escuto, que falo e que (re)penso, Novos significados. Uma força vital, Imponente, Atemporal, Comunicando aos ventos silenciosos do microcosmo, do papel, ou do universo virtual. Junta-se à quietude alheia, Naquilo que não foi dito, Revela o mal do século: Nosso antropocentrismo. Rebeca Capozzi. Mestranda em História das Ciências e da Saúde do Programa de PósGraduação da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. Atualmente estudo a descrição dos animais da França Equinocial produzida pelos capuchinhos franceses Claude d’Abbeville e Yves d’Évreux. E-mail: [email protected] “Sobre o terreno mole o pé de um bicho não escorrega” - [José Roberto S. Saiol, PPGHCS/COC/Fiocruz]15/5/2020
Acabei de ver na Mídia Ninja: “troco uma máscara por um alimento”. Meu coração parou. Hoje é dia das mães. Ontem, meu avô teria completado 90 anos. Essa noite eu sonhei com ele e com a minha avó. Quando me dei conta de que estava sonhando, lembrei que aquele cotidiano – um domingo de churrasco e casa cheia, de fazer o prato da minha avó e tentar convencê-la a comer mais algumas colheradas em troca de um doce – já não podia mais existir. Que saudade deles! Se foram e ficou um buraco no meu coração. Estava lendo textos do século XIX para a pesquisa: Comte, Saint-Simon, Torres Homem... Esses textos foram fundamentais na promoção do valor social das ciências e na constituição do seu estatuto de legitimidade; elas eram, de uma só vez, o meio mais eficaz para o melhoramento da sociedade e para a construção de um futuro de progresso e felicidade. É tão estranho [é esse mesmo o adjetivo?] ver esse edifício que eles ajudaram a erguer ruir dessa maneira tão dramática – junto, é claro, de todos os marcos civilizatórios que conquistamos desde aquela época – sem saber muito bem como se luta contra isso num mundo dominado pelos perversos. Como disse a Eliane Brum, os nossos dias precisam voltar a nos pertencer. O Fourier é um cara muito doido, né?! A insustentável leveza do ser é um romance; mas bem que podia ser um livro de filosofia. Entre as muitas lições que existem nele, está um convite à apreciação dos acasos. Kundera ensina: “Não há, portanto, razão nenhuma para censurar aos romances o seu fascínio pelos misteriosos cruzamentos dos acasos, mas há boas razões para censurar o homem por ser cego a esses acasos na sua vida cotidiana e assim privar a vida da sua dimensão de beleza”. O acaso que tornou possível a convergência das nossas escolhas; o acaso que, de modo indulgente, te mostrou que existe mais em mim do que minha antipatia e minha personalidade difícil; o acaso que nos levou a redigir de mãos dadas aquele que foi o nosso parto mais longo e dolorido até o momento; o acaso que deu ensejo ao nosso reencontro; o acaso de dividir carinhos e um [quase] cochilo numa árvore do MAM iluminada pelo poste da Lota (aquele, do Aterro, que simula o luar) enquanto a gente esperava a vez do dj chato da festa passar. Afeto. Minha saudade de todos os dias. Está no livro: “mesmo nos momentos da mais profunda desordem, é segundo as leis da beleza que, secretamente, o homem vai compondo a sua vida.” Não aguento mais o Bolsonaro. Estava prestes a completar dois meses sem dar um único abraço quando a Anny apareceu. Hoje é dia de live da Duda Beat e de texto novo da Laura. Também sonhei com ela; voltávamos ao nosso restaurante secreto no Largo do Machado. Que sorte foi ter vindo pra casa a tempo! Se tivesse ficado sozinho no Rio, já teria enlouquecido. A minha passagem favorita do conto d’Os Sobreviventes diz o seguinte: “[...] não tem jeito, companheiro, nos perdemos no meio da estrada e nunca tivemos mapa algum, ninguém dá mais carona e a noite já vem chegando.” Por causa dele, eu descobri a Angela Ro Ro. Cada um dos que se foram era o amor de alguém. Ontem eu estava ouvindo de novo o registro da gravação de “The end of a love affair” pela Billie Holiday. A música é uma coisa tão especial! Preciso qualificar e o prazo pro texto da SBHC já está estourando. Vô, vó, que saudade. Quando vocês desapareceram no sonho, caí nos pés da cama – bem ali onde eu me aconchegava entre vocês quando era criança – e chorei de soluçar. Quando terminei de chorar, acordei. Outra lição do Kundera: “O amor não se manifesta através do desejo de fazer amor, mas através do desejo de partilhar o sono.” Tem feito dias tão bonitos por aqui. As nuvens no céu se parecem com pinturas de tinta óleo. Acordei tarde de novo; está muito frio! Estou atrasado para descer e espremer as laranjas do suco do almoço; fica todo mundo esperando. O que eu gosto na poesia da Matilde Campilho é que cada texto é o percurso de descoberta de uma teoria filosófica complexa sobre qualquer coisa. Pessoalmente, prefiro as que falam sobre o amor: “O mestre ainda não veio decretar o começo da abstenção e, olha, a luz ainda está conosco.” Enquanto não houver vacina, não poderei voltar ao meu karaokê favorito em São Cristóvão. Meu sol está escrevendo um texto novo. Conversamos longamente no telefone sobre ele e rimos como sempre acontece quando estamos juntos. Quando será que nos encontraremos de novo? Estamos com saudades. É tudo tão cruel. Eu não posso usar prestobarba, tenho foliculite. Se eu soubesse que as viagens seriam suspensas, teria trazido o aparelho de barbear do Rio. O que eu nunca vou perdoar nesse vírus é que ele me tirou dos braços onde eu me acostumei a estar; os mesmos pra onde sempre quero voltar. De novo a Matilde Campilho? “Porque, toda a gente sabe, sobre o terreno mole o pé de um bicho não escorrega. Isso é o fim do medo. Hoje é dia de São Mateus, e Santo Agostinho repete insistentemente o velho mantra: ‘Prefiro a misericórdia/ Prefiro a misericórdia/ Prefiro a misericórdia.” Estou cansado... Três Rios, 12 de maio de 2020 Sobre o autor: sou aluno de doutorado em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz, e estudo as relações entre ciência e utopia durante o século XIX. Nesse texto, lancei mão direta ou indiretamente de algumas das minhas referências literárias favoritas: Milan Kundera, Caio Fernando Abreu, Matilde Campilho, Laura Nery. Cada um deles tem me feito companhia nesse período de isolamento social e me ajudam a dar sentido e a elaborar esse momento tão difícil para a nossa geração; não sei o que seria de mim sem eles. Agradeço à Renata Nassur, que gentilmente autorizou a publicação do registro fotográfico que fiz de uma de suas obras, e que ajuda a compor este texto. E-mail: [email protected].
Quixote, Dali e outros moinhos culturais - [Pedro Souza Moreira da Silva, PPGHCS/COC/Fiocruz]15/5/2020
Em uma já longínqua época, onde ainda vivíamos em um país e, por isso, ainda tínhamos um presidente, o mandatário do cargo proferiu um discurso que me ecoa, e muito, nesses tempos de quarentena. Ao proferi-lo em sua posse, disse que era o momento “do reencontro do Brasil consigo mesmo”. Era homem, mas visto como um cefalópode, julgado por hipoteticamente ter um sistema nervoso pouco complexo e, em consequência, erroneamente considerado pouco afeito a arroubos cognitivos. Porém, esse ser nectônico, que navegou por mares intocados desde os tempos de Isabel, conseguiu com seus incansáveis tentáculos abraçar uma porção de gente que sentia aquele estranho frio que queima por dentro e que faz a sensação de vazio ser só um ponto nessa imensidão deserta de nutrientes.
Longe de querer julgar as façanhas ou bolsas de tinta que mancham ostras e outras iguarias marítimas marinadas por quase uma década, me prendo ao discurso da posse, sem deixar, evidentemente, de desabafar sobre a saudade dessa miscelânea aquático-social. Essa quarentena está sendo um momento de reencontro do eu comigo mesmo. Isso porque o estranho frio que queima por dentro não me ataca as entranhas. Mesmo à distância, mantenho-me exitoso em oferecer minha força de trabalho em troca de contas pagas. É um reencontro, pois todo o reencontro envolve pelo menos dois que já se conheciam e que, nesse inevitável ringue de Heráclito, se encontram sempre pela primeira vez. Nesse reencontro entre o eu externo (corpomente) e o interno (desejosensação) pude reencontrar, pela enésima vez, a História. Com ela saio de cavernas, subo em acrópoles, viajo por realidades estrangeiras conhecidas e desconhecidas mais uma vez e pela primeira vez, concomitantemente. Acho demasiadamente duvidoso dizer que me afasto ou aproximo da História alternadamente. Na realidade nua e crua, nunca nos afastamos. Porém, diante das mazelas oriundas das obrigatoriedades financeiras que esse mundão nos traz, as vezes não consigo ouvir as palavras que ela me sussurra através de territórios tão paraguaios, tão platinos e sempre tão pantanosos. Isolado, consigo enfim ouvir o recitar de seus versos ao pé do meu ouvido, que me arrepiam de medo e desejo ao longo das páginas impressas em um dispositivo online. Nesse tempo de quarentena, a distância e a proximidade têm se mostrado ambíguas ao evidenciar o amor, esse negócio que transcende qualquer parâmetro da fisio-psiquê humana. Mesmo sabendo da impossibilidade de tal ato, deixarei o debate sobre o que é o amor de lado por um tempo, já que ele tomaria de assalto todos os parágrafos aqui tentados sem ao menos percebermos. A proximidade intensa e obrigatória com a minha esposa tem me feito cair em uma descrição tão densa, que nem mesmo o antropólogo mais atento poderia imaginar. Viajando nos pormenores da nossa relação, pude perceber que a amo tanto, independentemente de qualquer que seja a angular de observação proposta. Nos detalhes e nas generalidades, meu amor pela Gabi é cada vez mais posto de forma escancarada nas janelas do nosso apartamento que, por conta disso, mais liberta do que aprisiona. A distância tem ativado minhas celulases que ficaram tanto tempo ocultas nessa genética histórico-biológica-musical por vezes cambiante. Ai que saudades do arquivo! Digo de minhas celulases pois, mesmo sem tê-las de forma explícita, códons emanam da sequência de bases que estão filogeneticamente evidenciadas no gosto pelo cheiro de papiros indecifráveis, todos singela e confusamente armazenados em palácios republicanos (os imperiais ainda hei de visitar!). Por ter esse jeitão de traça e cara de cupim, que falta me faz o contato com os documentos que, mesmo sem jorrar nenhuma gota d'água, são fontes inesgotáveis de inspiração e dados (basta fazer as perguntas corretamente, não é mesmo?). Ao longo dos últimos dois anos percebi essa minha, outrora oculta, verve papirofágica. Porém, esse momento de impossibilidade do contato com tais artefatos que nos permitem brincar como uma criança einsteiniana, deformando, se informando e interpretando o espaço-tempo, tornou-a muita mais evidente. Mais uma vez, grito para eu mesmo ouvir: que saudade do arquivo!!! Entre banhos de álcool 70%, ministrar aulas para displays (que para alguns são mais complexos do que derivadas e integrais no Fund I) e postagens em plataformas nas quais até mesmo o Gancho não se atreveria em acossar a Sininho, tenho conseguido ler bastante. Dessas leituras, deixo aqui algumas impressões, mesmo que estas tenham mais jeito de um violão cubista (e braqueano) do que um do ré mi emanado de uma flauta doce. Um dia fui a uma exposição no centro da cidade. Faz bastante tempo. Se tratava de algumas produções de Salvador Dali. Dentro daquele apanhado de pinturas e desenhos que me impressionaram bastante, estavam algumas ilustrações produzidas para abrilhantar obras literárias já bem conhecidas (ou pelo menos foi isso que atordoadamente compreendi). Lembro bem da lisergia das obras para Alice no País das Maravilhas. Aqueles coloridos incríveis convenceriam até o mais convicto dos coelhos que laranja é uma cor simples para o brilho dos sabores carotenóidicos e lipídicos em geral. Mas confesso que, mesmo sendo a produção de Dali para o País algo incrível, os trabalhos ligados ao livro de Miguel de Cervantes me marcaram de forma muito mais singular. Das ilustrações para as aventuras de Quixote e Sancho, uma possuía um grande X carregado na tinta, borrado/pintado na parte superior de um papel. Aquilo era e é, até hoje para mim, o mais lúcido e convincente moinho que já vi. Lendo algumas histórias italianas e também outras sobre balineses e marroquinos, pude entender finalmente porque Quixote batalhava contra moinhos, que aquilo estava longe de ser algum tipo de sandice e mais: pude compreender por que, ao ver aquele borrão pintado na parte superior do papel, instantaneamente o moinho girou dentro da minha cabeça. Talvez mais do que isso, pude compreender e sentir que as teses e dissertações são produzidas por outputs oriundos da nossa mente-coração-psiquê-corpo. É mais do que evidente que inputs provenientes das bibliotecas e professores são totalmente indispensáveis. Sem isso nosso sistema nervoso claudica e nem mesmo pode ser chamado desta maneira. Porém, grande parte do potencial que produzirá um trabalho acadêmico, uma poesia, uma pintura ou melodia (respeitando e considerando o papel indissociável dos sistemas simbólicos de cada povo em todos os citados processos) está dentro da gente e pode e precisa ser cultivado e fortalecido neste momento de isolamento. Talvez seja uma oportunidade, mesmo que indesejada, imposta e extremamente assustadora, de nos lapidarmos internamente. Sempre vale lembrar que Bloch escreveu um dos textos mais belos e impressionantes do século XX do chão de uma cela. Ele não tinha acesso a bibliotecas, simpósios, conversas e muito menos a todos esses dáblio dáblio dáblios e agá tê tê pês que tanto atazanam e facilitam a vida da gente. Diante desta pandemia, torço com enorme afinco para a melhora dos enfermos, para a saciedade daqueles que não a tem e tento ficar são diante dessa imensidão de possibilidades nervosas, quixotescas e culturais que tanto me cativam. Algumas referências: BLOCH, Marc. Apologia da História, ou O Ofício do Historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro. LTC, 2008 GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. O cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela inquisição. São Paulo. Companhia das Letras, 2008 PRESIDENTE DA SEMANA (podcast) - Folha de São Paulo episódio 26. Locutor: Rodrigo Vizeu. Entrevistados: André Singer e Demétrio Magnoli.2018 Pedro Souza Moreira da Silva é professor de Biologia e Ciências. Atualmente também é doutorando do PPGHCS (COC/Fiocruz). Seu objeto de pesquisa é a relação entre tropas, plantas e ambiente na Guerra do Paraguai. Email: [email protected]. A ilusão de estar sozinha, desacompanhada e/ou isolada nos meus sofrimentos e nos meus angustiantes e inescapáveis defeitos é uma daquelas coisas imemoriais que me acompanham desde que me entendo por gente. É difícil contar as vezes em que o fato de que outras pessoas passam por dilemas parecidos – ou melhor, de que passam por dilemas extremamente diferentes de mim, mas que compartilham sentimentos ou reações do mesmo tipo que os meus – se vestiu de revelação bombástica na minha vida. Tal re-realização, conhecimento esquecido (pois a vida parece tantas vezes um relembrar-se) era então acompanhada de um curto suspiro envergonhado de minha parte, frente minha caída na armadilha da crença na excepcionalidade. Talvez seja síndrome de filha única, pensei, ou meus pézinhos nas águas da depressão e ansiedade. A verdade é que poder compartilhar com outras pessoas as similaridades e diferenças na forma de viver, sentir e agir é o presente mais cativante que (re)descubro durante minha existência. Esse comunicar-se nunca deixa de me fascinar.
Ao receber o convite para a escrita de um texto sobre a pandemia, minha primeira reação instintiva, admito, é a preguiça. Mais que tudo, formular minha experiência em palavras que serão lidas por outras e outros carrega ainda um elemento levemente aterrorizante, independentemente do quanto escrevo ou quão mais velha fico. De novo, porém, o que ou quem me salva são as Outras e Outros, seres humanos que tenho o privilégio de conviver, mesmo que de formas aparentemente superficiais, como um texto. Nos relatos de alunos da Fiocruz e do PPGAS sobre pesquisa e vida na pandemia, por exemplo, vejo reflexos de minha experiência pessoal do momento, assim como evidências de situações muito diferentes da minha, sublinhadas sempre por um instinto louvável e ousado de partilha e de auto-expressão. Isso me inspira: a mistura do diferente e do parecido, e a prevalência de um impulso corajoso de narrar a própria história, de presentear sua vulnerabilidade para o coletivo – através do relato das resistências inventadas frente aos demônios interiores e exteriores que nos assolam (do vírus e do governo em ruínas, da falta de previsibilidade e rotina, ao isolamento e preocupação com entes queridos, e, algumas vezes, até a garantia da sobrevivência de si, de sua casa e seu povo). A sensação de compartilhamento me desafia e sempre me surpreende deliciosamente. Tenho aproveitado também dos encontros virtuais com alunos do LAH, laboratório de antropologia do qual faço parte no Museu Nacional. Nele, minhas e meus colegas às vezes contam um pouco sobre suas pesquisas, vidas pessoais, dilemas internos. Que privilégio é fazer parte desse microcosmo, reflito! Essa coragem me incentiva, por minha vez, a me expor um pouco também. Acredito que um dos maiores desafios desta quarentena para mim – do alto de meus privilégios como mulher branca, cis, hétero, de classe média, sem filhos para cuidar – tem talvez sido escapar de mim mesma, de minha cabeça, e de meus próprios pensamentos e limites. Há tempos sou ciente do efeito produzido em mim por longos tempos de enclausuramento dentro de casa, mas confesso que mesmo assim mantia, antes da pandemia, um sonho meio romantizado de uma cabana na floresta em que poderia ficar sozinha, escrevendo, lendo e refletindo, cumprindo todos meus afazeres atrasados meses afora. Bem bobinha, eu sei. Não mais. A inadequação do modelo individualista-capitalista do mundo moderno ocidental, que se alimenta desse pernicioso mito da autossuficiência, nunca me foi tão evidente, passando de uma concordância intelectual para uma convicção profundamente real. Percebo na carne e nos ossos que, para pensar e produzir, além de tempo, preciso de gente. Anseio pelo convívio e pela troca, assim como sinto falta de caminhar pelas ruas, de olhar a paisagem pela janela do ônibus ou do carro, e deixar meus pensamentos serem modelados pelas linhas montanhosas de Minas, pela praia no Rio, por um boteco lotado. Encaro cada vez mais com suspeita os insights demasiado solitários, mas ao mesmo tempo também não sei sempre lidar com o excesso de rotas de escape que pipocam de todo lado – como lives de autores famosos, livros gratuitos, e aulas online de ioga. Por melhores as intenções de criadoras, criadores e participantes desses muitos cursos e possibilidades, um senso de falsidade ou banalidade acompanha tais caminhos, relembrando um mercado estranho, uma pressão produtiva mascarada de auto-cuidado. A surrealidade da situação retorna, e pareço voltar ao lugar de início. Vivemos tempos estranhos. Por outro lado, porém, os privilégios desse tempo e de minha condição específica também ficam claros durante esse fase esquisita. Por exemplo: vivo junto a minha mãe, que pode continuar a trabalhar de casa, que está bem de saúde, e, principalmente, que me faz rir um pouco todos os dias. Estar no mesmo lugar por tempo prolongado, além disso, resgata um pouco aquele olhar de criança, que vê espaços apertados como grandiosos e se diverte ao cuidar das plantas e raspar a tinta da parede descascada. O pequeno ganha premência em geral, e há de se aproveitar o conforto de um bom café à tarde, das conversas por telefone e do não fazer nada. Mais que tudo, através de amigos e colegas e do privilégio tecnológico que comprime a distância geográfica, consigo, como disse, sair um pouco do meu estupor, e achar graça de profundas inseguranças – as minhas, as do mundo e as do momento. Enfrento a ansiedade e acordo para mais um dia: agradeço à multidão de presenças corajosas que insiste em se manifestar. Laura Lobato-Baars é mestranda em Antropologia Social pela UFRJ, Museu Nacional, PPGAS. Seu tema de pesquisa é a formação da população sino-afro laiap do Suriname, sob orientação de Olívia Gomes da Cunha. Email: [email protected]; enviado em 14/05/2020. Era 13 de março de 2020. Estávamos na aldeia Nova Esperança, do povo Matsés, rio Curuçá, quando um informe iniciou as discussões daquele dia, na 6ª Assembleia Geral da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (UNIVAJA): a aproximação do coronavírus na região, registro de casos em Iquitos, Peru, e Cruzeiro do Sul, Acre. Na noite anterior, participantes da assembleia souberam da notícia pelo orelhão da aldeia e aproveitaram o início das atividades para dar o informe, chamando a atenção dos povos ali reunidos para o que estaria por vir – mesmo que ninguém tivesse a exata noção do que, de fato, estaria por vir. Afinal quem já tem essa noção hoje? Creio que ninguém, sobretudo no Brasil, onde enfrentamos duplo vírus, dupla crise: sanitária e política. Nessa movimentação toda, lá estavam os Korubo, a quem tenho acompanhado desde janeiro de 2019, povo indígena de língua pano, do ramo setentrional, considerados pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI) como ‘recente contato’, habitantes da Terra Indígena (TI) Vale do Javari, localizada no extremo oeste do Estado do Amazonas. Era a primeira vez que os Korubo participavam de uma assembleia do movimento indígena, apesar de serem constantemente mencionados em diversas discussões – seja por sua fragilidade enquanto recém-contatados, seja por sua bravura, ou ainda, pelos conflitos do passado envolvendo os não-indígenas. Os ‘caceteiros’ do Vale do Javari dessa vez estavam ali, e isso era motivo de comemoração generalizada. Conforme fizera ao longo de toda a assembleia, tentei explicar-lhes o informe da melhor maneira possível naquele momento: estava chegando uma gripe nova (toxoe paxa), disse eu, só que essa é diferente da que vocês começaram a conhecer e têm tanto pavor – pois sabem que quando um gripa, todo mundo gripa –, a gripe nova causa também falta de ar (xakanke). Instantaneamente, eles ficaram com aquele olhar, aquele mesmo olhar que usam quando sentem-se em perigo, ameaçados diante das enfermidades que historicamente levamos a eles, para as quais os remédios do mato (iwi polo) não fazem efeito, nem as práticas xamânicas, aspirações e sucções de doenças; nem mesmo o tatxik – poderoso cipó amargo que, sob a forma de bebida, potencializa os homens à caçada e as práticas curativas – poderia enfrentar uma doença trazida e até então desconhecida pelos não-indígenas (nawa). Frisei ainda que, por não conhecermos o novo coronavírus (nawavo unanemen), não tínhamos remédios, nem vacina (txiete vama, toskai vama) e que, portanto, o ideal para protegê-los era permanecerem nas suas aldeias. O informe sobre o novo coronavírus precedeu a discussão a respeito dos jovens indígenas que, para estudar, residem na cidade de Atalaia do Norte, Amazonas. Posteriormente, ainda no mesmo dia, o coordenador do Distrito Especial Sanitário Indígena (DSEI) Vale do Javari, Jorge Marubo, fez outro informe: já havia 77 casos de Covid-19 no Brasil, e o planejamento inicial do DSEI Vale do Javari seria imunizar as populações das aldeias contra doenças respiratórias, com as vacinas Pneumo 10, Pneumo 23 e H1N1. Iniciariam as buscas por um local de isolamento para possíveis casos em Atalaia do Norte – naquela ocasião ainda não havia casos ali –, e alertou ainda sobre os limites da Terra Indígena Vale do Javari, regiões onde não há controle. A TI Vale do Javari, com seus 8,5 milhões de hectares, além dos sete povos contatados que compartilham esse território, abriga também uma das maiores concentrações de povos isolados do mundo.
No dia 14 de março de 2020, encerramos a assembleia, e os seis povos que participaram – Kanamari, Korubo, Kulina-Pano, Marubo, Matis e Matsés – seguiram para suas aldeias. Malevo Korubo e Takvan Vakwë Korubo perguntaram-me ainda se eu voltaria para a comunidade com eles. Infelizmente não, mas ainda não era por causa do novo coronavírus. Os Korubo recém-contatados – existem ainda subgrupos Korubo isolados na TI Vale do Javari – são hoje 91 pessoas distribuídas em quatro aldeias no rio Ituí, e eu estava trabalhando na segunda delas: Sentele Maë, também conhecida como Roça Velha (Maë Xëni). Mas ao longo de fevereiro de 2020, na Sentele Maë, acometeram-me dores, sensações de desmaio, calafrios, febre e mal-estar frequentes. Aconselhada pelos profissionais da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) que dão assistência aos Korubo do rio Ituí, decidi, no início do mês de março, sair da aldeia para realização de exames em Tabatinga, Amazonas. Fui então diagnosticada com anemia ferropriva – este já era por si só um indício de que eu precisaria de uma pausa mínima nas atividades de campo para tratamento, meu corpo alertara –, mas havíamos sido convidados para a assembleia, comprometera-me a acompanhá-los, e queria muito participar de tal ocasião. Então fui, mesmo debilitada. Naquele momento não refletia ainda sobre a invasão do novo coronavírus no Brasil, no Estado do Amazonas, e sobre a paralisação da vida de todos, reconfiguração total, deixando rastros que nem sabemos se desaparecerão. Somou-se ao diagnóstico de anemia ferropriva a Portaria nº419 da FUNAI, que estabeleceu: Art. 3º. O contato entre agentes da FUNAI, bem com a entrada de civis em terras indígenas devem ser restritas ao essencial de modo a prevenir a expansão da epidemia. [...] §2º. As autorizações já concedidas devem ser reavaliadas pelas CR’s à luz da prevenção da epidemia da COVID-19, podendo ser reagendadas, especialmente quando envolverem a realização de eventos ou impliquem a entrada de mais de 05 pessoas na terra indígena. [...] Após a assembleia, retornei para minha casa em Tabatinga, e a tríplice fronteira – Brasil, Colômbia e Peru – já não era mais a mesma: escassearam álcool em gel, máscaras e pessoas na Avenida da Amizade. Um clima de tensão tomara o lugar e prenunciava que dias difíceis viriam, a fronteira se tornaria um caos, uma cápsula hermética. Hoje, maio de 2020, encontro-me em São Luís do Maranhão, local onde nasci e me criei, fazendo tudo o que está sob o meu alcance e controle nesse isolamento para recuperar minha saúde física e, na medida do possível, cuidando da saúde mental. Meu corpo está aqui, mas frequentemente flagro minha mente na fronteira. Penso diariamente nesses meus amigos Korubo que ficaram lá no mato, nas mulheres que me criavam como filha, ensinando-me tantas lições de vida sobre força, coragem e poder, e nas crianças que me presenteavam com frutas, ensinando-me sobre afeto, cuidado e amizade. Penso no quão vulneráveis os Korubo estão diante da pandemia do novo coronavírus. Por um lado, enquanto recém-contatados, possuem um sistema imunológico que em muito assemelha-se ao dos povos isolados, extremamente vulnerável às doenças de nawa. Por outro lado, mantêm atualmente relações constantes com os não-indígenas da FUNAI e SESAI – profissionais que cuidadosamente devem cumprir quarentenas, observar detalhes, sob pena de tornarem-se vetores de transmissão do vírus, pois o mínimo deslize pode levar ao extermínio dos Korubo. Penso nos sofrimentos que já tiveram, nas lutas que já travaram no passado, quantos morreram no mato! Perderam praticamente todos os seus anciãos, fugindo de bala, morrendo de gripe e de malária. E agora, quando finalmente sua população voltara a crescer, “nova” ameaça. Para os povos indígenas, essa ameaça tem resquícios de antiguidade. Penso também se e quando voltarei a vê-los. Juliana Oliveira Silva é doutoranda do PPGAS-Museu Nacional/UFRJ. Pesquisa gênero e parentesco entre os Korubo recém-contatados da Terra Indígena Vale do Javari, com ênfase nas práticas de construção e aperfeiçoamento dos corpos, e na criação de crianças. Localidade atual: São Luís, Maranhão. E-mail: [email protected] Texto escrito numa tarde de outono, em 13/05/2020 Respeitar os meus limites tem sido um mantra para mim. O despertador do celular toca, avisando que é hora de levantar para viver mais um dia em isolamento social por causa da pandemia de Covid-19. Todos os dias, realizo os rituais matinais de lavar o rosto e ir para a cozinha preparar meu café da manhã. Costumo tomar café assistindo ao noticiário ou ouvindo podcasts sobre assuntos variados. As notícias sobre o aumento de casos confirmados e de mortes por coronavírus no Brasil e em outros países causam susto em mim. Porque não são só números. São vidas, seres humanos que tinham trajetórias, histórias, eram queridos e amados pelos seus parentes e amigos. Quando as medidas de isolamento social entraram em vigor no Rio de Janeiro, eu estava indecisa se permanecia aqui no alojamento da Fiocruz (localizado em Curicica, Zona Oeste) ou se voltava para Caicó, minha cidade de origem, localizada no sertão do Rio Grande do Norte, distante a uns 270km da capital Natal. Decidi ficar em terras cariocas, pois fiquei com receio de contrair a doença durante a viagem. A maioria dos voos que pesquisei tinham conexões e escalas em São Paulo e eu passaria o dia inteiro viajando. Confesso que foi uma decisão difícil, pois viver em isolamento social longe da família é desafiador. Mas fico aliviada a cada mensagem e telefonema que recebo da minha família e do meu noivo e me conforta saber que estão bem. O fato de dividir apartamento com uma pessoa que vem da mesma região e faz parte do mesmo programa de pós-graduação supre a falta que sinto da família. A gente conversa sobre nossos hábitos alimentares, festas, tradições e situações engraçadas que nossas famílias fazem e que são muito nordestinas como o jeito de falar e se expressar. Quando nós reconhecemos as manifestações culturais, isso nos faz valorizar ainda mais o lugar de pertencimento e reforça o quanto as memórias e vivências são elementos significativos na constituição dos afetos. Os hábitos aqui no alojamento mudaram. Somos quinze estudantes, vindos de diversos lugares do Brasil e de outros países, pertencentes aos programas de pós-graduação da Fiocruz. Como a maioria dos estudantes voltaram para casa, a direção do alojamento tomou algumas medidas como: deixar dois estudantes por apartamento e distribuir álcool 70 para auxiliar na limpeza. Os funcionários do alojamento trabalham no sistema de escala e os que têm mais de 60 anos foram afastados temporariamente e/ou receberam férias antecipadas até a situação se normalizar. Como vivemos em ambiente coletivo, as nossas ações e cuidados têm sido redobrados. A ida ao supermercado, por exemplo, se tornou um desafio, pois os calçados que utilizo para sair ficam todos do lado de fora do apartamento. Saio sempre de máscara e fico assustada com o fato das pessoas não utilizarem nos espaços em que há mais fluxo como a rua. O supermercado sempre está cheio e algumas ações de higiene e prevenção foram adotadas como passar álcool nas mãos e no corrimão dos carrinhos antes de entrar no estabelecimento e sinalizadores nas filas com distância de 1,5 metros entre cada cliente. A chegada em casa é outro processo: as compras feitas no supermercado ficam do lado de fora e só entram depois que higienizo todos os itens. Jamais imaginei que faria todo este ritual para ir ao supermercado e entrar em casa. No tocante aos trabalhos relacionados a tese, mantenho um ritmo de escrita e leitura que considero normal ao comparar com a rotina que eu tinha antes da pandemia, pois sempre trabalhei bem em casa. Mas não é simples escrever tese em tempos de pandemia e respeitar os meus limites têm sido um mantra para mim. O fato de ter a consciência de estar nesta situação é bem mais angustiante. Porque antes, quando o cansaço mental predominava, eu podia sair para ver o mar, ir ao cinema, ver uma exposição artística em algum museu ou simplesmente pegar o transporte público lotado do Rio de Janeiro. Como estou mais tempo em casa, desfruto do espaço externo do alojamento. Por ser amplo e arejado, sinto liberdade de caminhar pelo belíssimo jardim e aproveito para tomar um banho de sol. As flores têm brotado com muito vigor e os sons da natureza predominam como o cantar dos pássaros e o cair das folhas no chão. Meditar, escutar música, assistir filmes e fotografar têm sido meu refúgio em dias cansativos. Fotos tiradas no jardim do alojamento da Fiocruz, localizada em Curicica, Zona Oeste do Rio de Janeiro. Escolher o que fazer ou não em tempos de pandemia se tornou privilégio para alguns. Escrevo isto porque, na condição de pós-graduanda, eu posso ficar em casa e estudar, diferente de algumas pessoas que exercem atividades consideradas essenciais como caixas de supermercado, entregadores de comida e mercadorias, motoristas de transportes públicos, profissionais de saúde. “Se puder, fique em casa” se tornou o lema desta pandemia e ela é fundamental para conter o avanço da doença e evitar a superlotação do sistema de saúde.
Eu tenho pensado muito no mundo que eu desejo depois que esta situação acabar. Tenho visto vídeos lindos de baleias e outros seres marítimos aproveitando o oceano como realmente deve ser e dos canais em Veneza com uma água cristalina. É a natureza nos mostrando que os problemas que o mundo enfrenta hoje tem muito a ver com os atos que praticamos. Portanto, sobre viver em tempos de pandemia, não é somente tentar sobreviver a uma doença que, infelizmente, têm matado pessoas no mundo todo, mas sim tentar viver diariamente da melhor maneira possível, respeitando o nosso corpo, a nossa mente e os nossos limites diante das atividades que desenvolvemos neste período em que estamos em isolamento social. é quase uma topada, uma pegada na quina quadrada da madeira de um troço que, se digo o nome, posso perder um olho. assim, com isso, arrisco pouco: um verso, uma linha... evito os movimentos bruscos por receio do rebote, centrifugo minha voz ao redor das coisas, gingo entre ecos e reflexos de paredes carregadas de mim. mas, por melhor que entre na curva, por menor que seja meu passo, por maior a velocidade de escape, ainda que, magro, possa escorrer pelas fissuras, as coisas, todas elas, justo as coisas, por serem coisas, exercem força; devolvem, em expectativa, nossa história: puxam, sugam, aspiram. e eu volto a me esborrachar. Thiago Braga Sá vive em Maricá, zona metropolitana do Rio de Janeiro, onde atua também como professor de Língua Portuguesa da rede pública municipal. Aluno de mestrado do PPGAS/MN e graduado em Linguística pela FFLCH/USP. É orientado por Bruna Franchetto e pesquisa sobre o território kuikuro – como é produzido e representado através das artes verbais, como se articula com as chefias indígenas do Alto Xingu e a história kuikuro, como nos ajuda a compreender a pragmática dos dêiticos da Língua Karib do Alto Xingu. E-mail para contato: [email protected] Um dos grandes desafios que temos de enfrentar nesse cenário de pandemia é o de manter-nos produtivos e saudáveis mentalmente. E para ser sincera, não existe uma fórmula pronta para alcançar esse equilíbrio. São dias difíceis e precisamos de muita resiliência para enfrentar esse cenário. Assim, é normal cada pessoa reagir de uma forma diferente. Na minha experiência particular, a quarentena tem aguçado um misto de sentimentos que nos últimos meses se tornaram meus companheiros diários: medo, tristeza, insegurança, solidão e saudade. Conviver com tudo isso junto e misturado não tem sido fácil, por isso tenho contado com a ajuda de uma psicóloga, de amigos e familiares.
Quando a ansiedade se faz presente, não tenho vontade de sair da cama, pois as coisas parecem não ter muito sentido. É bastante complexo dar continuidade às atividades do doutorado em meio a tantas notícias ruins, não só apenas relacionadas ao Covid19, mas ao contexto geral do Brasil. Uma das medidas que adotei foi parar de ver notícias jornalísticas sobre a pandemia, na tentativa de fugir um pouco da enxurrada de informações ruins – que estavam servindo de gatilho para minhas crises de ansiedade – e manter minha saúde mental. No entanto, nem sempre consigo praticar esse distanciamento e às vezes acabo vendo algo, mas de forma controlada para apenas me manter informada. Mesmo diante do caos provocado pela pandemia, tento manter dentro do possível uma rotina de estudo. Estou no segundo ano do doutorado em História das Ciências e da Saúde (Casa de Oswaldo Cruz-COC/Fiocruz) e preciso reescrever o projeto de pesquisa e elaborar o material para a qualificação no final do ano. Desse modo, acabo dedicando boa parte do meu dia às atividades do doutorado, o que de certa forma me afasta das preocupações do mundo lá fora. Porém, nem sempre consigo estudar, principalmente, quando fico muito ansiosa. Nesses momentos, procuro fazer algo leve, como conversar com um amigo pelas redes sociais, ver uma série, ler um livro ou simplesmente não fazer nada. A quarentena tem me ensinado a ouvir meus sentimentos, a desacelerar para entender as coisas e a identificar o momento certo de descansar o corpo e a mente. Falando em corpo e mente, uma das coisas que mais tem me ajudado é a realização de atividades físicas. Me sinto muito melhor após correr e fazer exercícios. Essa tem sido minha atividade diária preferida, pois consigo distrair a mente e cuidar da saúde. Mas isso só é possível porque disponho de uma quadra segura que fica longe de qualquer contato com o mundo externo. Assim, posso sair um pouco do meu apartamento e respirar o ar da natureza sem correr o risco de ser contaminada. Moro no Alojamento da Fiocruz e aqui em período normal somos muitos – pessoas de diferentes países e estados – contudo, atualmente estamos em número reduzido, visto que muitos colegas voltaram para casa. Optei por permanecer no Rio de Janeiro pela segurança da minha família. Meus pais moram no interior do Piauí e a viagem para lá é muito complicada, pois tenho que pegar um voo de quatro horas até a capital, Teresina, depois enfrentar seis horas de ônibus e uma hora de van para minha cidade. Fiquei com medo de nesse percurso ter contato com o vírus e ao chegar em casa contaminar meus pais que, de certa forma, estão mais seguros por morarem na zona rural. Para matar um pouco a saudade converso com eles por chamada de vídeo – comemoramos o aniversário da minha sobrinha desse jeito – e tento acalmá-los dizendo que está tudo bem comigo – minha mãe está muito preocupada –, que logo estaremos juntos novamente. Acredito que o fato da minha família estar protegida me deixa mais confortável e menos apreensiva. Aqui onde moro está muito calmo – sempre é muito agitado devido a quantidade de moradores e funcionários que trabalham na instituição –; às vezes só escuto o barulho dos passarinhos que, de umas semanas para cá, parece que passaram a cantar de forma mais intensa. Coisas que antes passavam despercebidas agora fazem parte da minha rotina, como, por exemplo, ficar observando da janela as flores no jardim enquanto tomo meu café matinal. Mas confesso que bate aquela saudade do ritmo acelerado da vida, de ficar reclamando que não tenho tempo para nada. O isolamento social só não está sendo mais severo porque estou compartilhando tudo isso com uma amiga que também faz doutorado no mesmo programa. Temos rotinas muito parecidas, sem falar que somos da mesma região – nordestinas, oxente –, assim falamos uma linguagem parecida, sorrimos das mesmas piadas e relembramos coisas da nossa infância que são muito peculiares. Ajudamos uma a outra, tanto nas nossas pesquisas do doutorado, como quando bate a tristeza e a saudade de casa. Meus amigos também estão sendo fundamentais nesse momento. Eles são aquele pontinho de esperança que tanto preciso para continuar acreditando que tudo isso vai passar. No entanto, estou tendo que aprender a lidar com essa distância física, sem abraços, sem beijos e sem cheiros. Sinto muita falta de encontrá-los para cantar nossas músicas preferidas no karaokê, para ficar conversando por horas sobre coisas aleatórias e para sorrir de forma descontrolada das maiores besteiras. Para amenizar a saudade conversamos bastante pelas redes sociais, assim compartilhamos nossas experiências e ajudamos uns aos outros. De modo geral, tenho percebido que o momento tem causado muita apreensão em todos. Não sabemos quando tudo isso vai acabar e nem como será o mundo depois da pandemia. Além disso, o contexto político do país é assustador, estamos sendo atacados todos os dias por um presidente irresponsável - para não usar outro termo - que ameaça de forma direta o futuro da pesquisa e da ciência no Brasil. São tempos difíceis e precisamos de muito cuidado para mantermos nossa saúde mental. Por isso, tento manter um equilíbrio entre o que tenho que fazer e o que quero fazer para também aproveitar meu tempo com coisas que antes não fazia. Como me disse um amigo, precisamos ressignificar o que é ser produtivo nessa quarentena, pois se acreditarmos que somos produtivos somente quando lemos dez artigos e escrevemos vinte laudas, cairemos em uma grande pressão emocional. Podemos ser produtivos quando lemos um livro de poesias que tanto amamos ou quando assistimos um filme que nos faz sorrir. Nesse momento, o que mais importa é o nosso bem estar, temos que priorizar coisas que nos façam bem. Então, que sejamos produtivos, cada um ao seu modo, ao seu tempo e ao seu ritmo. |
AutoresAna Cláudia Teixeira de Lima, PPGHCS/COC/Fiocruz Arquivos
Novembro 2020
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