Ao longo do ano de 2019, estudando a conformação dos estudos com vírus no Brasil, sob o ponto de vista da história das ciências, era inimaginável a projeção que estas “entidades morto-vivas” teriam nos primeiros meses do ano seguinte. Ainda no início de março de 2020, enquanto defendia minha dissertação sobre a chegada de uma nova doença viral na década de 1980, a dengue, o problema, embora mais próximo, parecia muito distante. Mas o fato é que os vírus tomaram uma projeção nunca antes observada. Seria impossível medir, atualmente, as inúmeras representações e metáforas criadas acerca desses patógenos, e, num futuro próximo, ainda será tarefa bastante trabalhosa. Um imaginário recheado surgiu, juntamente com um surto criativo. Nunca antes os parasitas intracelulares alcançaram tamanha fama. Agora, recluso em casa, acompanhado pelas poucas espécies de pássaros urbanos que cercam livremente o prédio, é inevitável não pensar em como nós, humanos, ignoramos as forças ecológicas até que elas se apresentem de forma incontornável. Foto: Acervo pessoal/documentário (Jorge Tibilletti de Lara, 2020) A experiência da quarentena não é unívoca. Embora tenhamos de enfrentar, às vezes, o tédio da rotina limitada, nossos sentimentos, pensamentos e sentidos brincam como num parque de diversões. Como doutorando, engano a mim mesmo, ao tentar me convencer de que teria alguma vantagem por, em condições normais, já trabalhar de casa. Mas o fato é que tudo mudou. Agora lemos e escrevemos nossos trabalhos enquanto lá fora ronda, junto de diferentes patógenos, hospedeiros vertebrados e invertebrados e outros objetos inanimados, um novo problema. A nova “espécie” de coronavírus trouxe consigo a clareza de que, se por um lado, a ciência e a tecnologia são fundamentais para a resolução dos grandes problemas contemporâneos, por outro, a sua negação é prática integral dos novos governos em todo o mundo. A disputa pela verdade, em diferentes escalas, não é feita unicamente no laboratório, e, por isso, grupos ideológicos acabam contornando a objetividade dos dados concretos da realidade, através de discursos desconexos, máquinas e atos violentos. Esse é um pequeno retrato do Brasil em 2020. Foto: Acervo pessoal/documentário (Jorge Tibilletti de Lara, 2020) A oscilação entre empolgação intelectual, medo, angústia, felicidade e ansiedade, faz parte da minha experiência na quarentena. Contudo, sem tantos prazos e pressões, as atividades de leitura e escrita seguem bem até o momento. Paralelamente, muitos projetos individuais apareceram. Sempre tenho ideias que vão além das minhas obrigações acadêmicas corriqueiras, mas agora elas ganharam um contexto oportuno. Para além do estudo de um novo idioma, cursos livres, listas de filmes e leituras de clássicos da literatura universal, um projeto em particular é o mais sintomático. Logo no início da quarentena, esbocei algumas ideias e comecei a documentar em vídeo a minha experiência. Essa espécie de “documentário experimental”, no significado mais simples que o termo possa adquirir, tem aglutinado diferentes questões que emergiram ou se tornaram mais concretas. Refiro-me sobretudo ao lugar ocupado pelo conhecimento científico hoje e ao negacionismo, e as tensões entre natureza e sociedade. Para mim, é possível refletir sobre todos esses pontos numa mesma “linha de raciocínio”, num mesmo “filme”, pois essas questões perpassam o meu dia a dia, estando não só presentes no meu gabinete, mas também na minha cozinha, no meu sofá e nas conversas que tenho. O fato é que estou vivendo da forma mais imediata e apavorante aquilo que minha formação em História das Ciências me fez ler nos livros. O extravasamento da natureza sobre a sociedade, ou a própria ilusão de uma divisão purificada entre essas categorias - invenção dos modernos, segundo Latour (1994) -, o drama das epidemias, as doenças, animais e microrganismos como atores sociais. A própria ideia de antropoceno, como era geológica marcada pelas profundas modificações de origem antrópica. Foto: Acervo pessoal/documentário (Jorge Tibilletti de Lara, 2020) Gravar a minha experiência na quarentena, refletindo sem escolha sobre todos esses pontos, é documentar, mesmo que de um modo e um recorte social particular, a vida no século XXI. Mas, embora pareça um projeto completo, roteirizado e sistemático, nada mais é do que uma sucessão das imagens possíveis de serem registradas numa quarentena, com algumas pequenas reflexões livres. Depois de já ter começado, vi que muitos projetos de historiadores públicos surgiram. A Associação dos Historiadores Públicos do Estado de Nova York, por exemplo, passou a incentivar seus membros a documentarem o cotidiano durante a pandemia, dado o impacto global histórico que os novos vírus estão causando. Do mesmo modo, historiadores alemães criaram uma plataforma online com o objetivo de coletar memórias da pandemia (Carvalho, 2020). Há uma necessidade de documentar, registrar, catalogar, de diferentes formas, a primeira pandemia do século XXI. Foto: Imagem colorida à lápis durante a quarentena, retirada do livro gratuito “The Public Domain Review: coloring book - for diversion, entertainment and relaxation in times of self-isolation, vol. 1”, acervo pessoal/documentário (Jorge Tibilletti de Lara, 2020) Menos pretensioso que esses interessantes projetos de História Pública, sem nem mencionar aqui as inúmeras outras produções e projetos das mais distintas áreas (artes, jornalismo, música, literatura, ciência), o projeto de documentar a minha vida durante a pandemia é, também, uma reação a algo que parecia tão distante, mas que não só está perto como constitui nossas sociedades. A emergência de novos vírus não é só o resultado das mutações genéticas desses patógenos. Ela é resultado também da presença humana em diferentes ecossistemas, da carência atual de governos que levem a sério os pressupostos dos cientistas, e, é claro, de um longo processo histórico. Os vírus e outros patógenos não são exógenos ao nosso mundo contemporâneo, não invadem nossas sociedades como alienígenas. Tal como os problemas de ordem sociológica, eles podem até não serem visíveis a olho nu, mas existem e nos afetam independentemente de nossas crenças, ideologias e alinhamentos teóricos. Foto: Acervo pessoal/documentário (Jorge Tibilletti de Lara, 2020) Documentar esta experiência é também produzir algo concreto em meio às incertezas que nos acometem. Se viver no Brasil já estava difícil e continuaria o sendo pelos próximos anos, a pandemia selou de vez a sensação caótica de estar vivo em 2020. Parece que não existe “bala mágica”[1]para este problema, mas valorizar o conhecimento e se engajar em projetos artísticos e filosóficos, pode ser um bom caminho para manter a sanidade, num nível pessoal, e a coerência, num nível profissional. O documentário não tem data para ficar pronto, mas será disponibilizado no YouTube, ainda em 2020. Foto: Acervo pessoal/documentário (Jorge Tibilletti de Lara, 2020)
Referências: CARVALHO, Bruno Leal Pastor de. Associação norte-americana pede a historiadores que documentem a vida cotidiana durante a pandemia (notícia). In: Café História – História feita com cliques. Disponível em:https://www.cafehistoria.com.br/associação-pede-a-historiadores-quedocumentem-a-pandemia-de-coronavirus/ISSN: 2674-5917. Publicado em: 17 abr. 2020. Acesso: [07/05/2020]. CARVALHO, Bruno Leal Pastor de. Historiadores alemães criam plataforma online para coletarmemórias da pandemia do novo coronavírus (notícia). In: Café História – História feita com cliques. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/memorias-da-pandemia-do-novo-coronavirus/ Publicado em: 7 abr. 2020.Acesso: [07/05/2020] LATOUR. Bruno. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994. [1]Expressão utilizada pelo bacteriologista alemão Paul Ehrich (1854-1915), em referência a criação de uma droga específica para combater uma doença específica, sem afetar células saudáveis do corpo. Jorge Tibilletti de Lara, Doutorando em História das Ciências e da Saúde (Ppghcs/Coc/Fiocruz) @jorge.tibilletti Os comentários estão fechados.
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AutoresAna Cláudia Teixeira de Lima, PPGHCS/COC/Fiocruz Arquivos
Novembro 2020
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