Para Luane Bento dos Santos Angústias e esperanças
Rondam a madrugada. Estamos em recolhimento, Ela disse Minha irmã de Iemanjá Trocando mensagens Cibernéticas espacialidades Fazem a gente se encontrar E a gente encontra alento Em musicas Sonhos Pesadelos Poemas e desenhos Livros e mensagens Amizades Irmandades que estão de alma presente Mas com o corpo noutro lugar E nem tão cedo a gente se encontra E nem tão cedo a gente se vê Quanto tempo, pois é Pois é, quanto tempo? Guenta a rotina Espera a vacina Sorte de quem está com os seus Entre os seus Quem tem uma turma dentro de casa Nem todo mundo tem Tem gente sofrendo De solidão ou de companhia Tem muita mulher aflita Mulher, menina, adulta e criança, Adoecida, esmorecida Com dor que não tem mais onde doer De hoje, de ontem De agora e de antes E do que está para acontecer Estamos recolhidas, presas em mundos de intimidades casas-paraíso ou casas-cativeiro-cruel ou casas-de-sempre, só alegria, trabalho, briga, barulho A gente segue vivendo a rotina comida, trabalho, criança, faxina correria, aflição, oração reza, reza reza pra não ficar doente não virar número num estado que dá de ombros e finge ser nada de mais Entre muros a vida continua, mas já mudou. Sem as idas e vindas Sem pendular de lá pra cá Sem a rua com sua euforia seu cansaço e prazer sua labuta bruta ônibus, trem dióxido, poluição, aflição, afobação cano de descarga, rodoviária sufoco lotação supervia amendoim, é três por um real sinal sono e simpatia estação, travessia e construção. A rua saiu da rotina Virou exceção A rua ainda mais suja Mascarada Apressada Desconfiada A rua é contaminação “Sai que eu tô de rua!” Grita a vizinha Pro netinho e pra netinha Bem em frente ao seu portão. A rua é perigosa Normalmente Pra muita gente Inda mais se é preto se é mulher se é do candomblé se é o que é. Umbanda, quimbanda, batuque Filho de toda gira Se anda com suas guias Sabe bem como é andar Alerta, assustado Traçando um atravessado olhar do outro lado transeunte apavorado atravessando a rua pra não cruzar E se vive nas quebradas parado na esquina Sabe que é padrão Desviar do camburão Sirene apagada, Chega do nada Pronto pra te pegar. Pra muita gente A rua já é medonha Risco já é normalmente Mas agora somou problema Por fora do esquema Um troço que não se vê Que circula na comunidade Risco maior pra quem não crê Calado por dias cresce em você rodopia e dá voltas Entra na casa Sem ser convidada Invade teu quintal Chega em quem não devia Em quem te dá a mão Vem de quem nem pressentia O risco de sair Pôr o nariz pra fora do portão Vai naqueles que tu mais abraça Beija Alimenta Amamenta Ama Acalenta Galera que dorme contigo Que divide um sentimento come, brinca e faz festa chora e ri Mas o clima agora não é de festa Festa é “a-g-l-om-e-r-a-ç-ã-o” (Soletre-se, para caber no entendimento!) Inverno rigoroso Hora de hibernação De fugir da confusão criança não deve sair Brincadeira, correria: não. É coisa de menos fazer “Não tome vento, menina” “Fica em casa que a noite está fria” (O dia também) E aquela gripe, resfriado, rinite Escarro, tosse, coriza Meleca de toda guisa Traz nova preocupação Estamos recolhidas Com nossas almas reunidas E me vi assim também Falo comigo mais a cada dia E transito entre espaços e tempos Becos e vielas Portas trilhas e tramelas Traçados na memória Tanta história Tantos gritos Tantos medos Silêncios, fugas, esquecimentos perdidos, escondidos, enterrados nos cantos, ocultos no vão São chaves velhas sangrando na mão Portas trancadas Baús de Retalhos Mofo nos agasalhos Espalho tudo no chão Tento refazer meus passos Minh’alma viaja Por dias e horas vagas Por tantos lugares Viajo e me encontro Me encaro de lá Com outras caras Outras máscaras Risos, sorrisos e lágrimas Poucos mapas Tantas feridas Abertas, secretas Estilhaços que ainda Circulam e ardem no caminhar Pra dor não me pegar de surpresa Tento manter a vela acesa Pra Orixá me guiar Pra não perder a sanidade Pra não me amargar na maldade Das lembranças que nem queria lembrar É tanta doença que esse mundo tem pra tratar Nestes dias de isolamento Meu rebento é o sol e eu sou um lamento Ter uma cria é riso É motivo pra continuar. Me banho na luz e feito borboleta Peço a Iansã que me leve no vento Pra fora de mim, me deixe viajar Que me mude o pensamento Invada meu coração Me permita voar Peço a Iemanjá, Odoiá que me venha com água fria O ori me molhar que o mar me alimente com uma canção ao fim do dia acalente o coração A Oxum imploro que me geste me embale, Mãe me renasça Oraieie A Nanã que me enraíze nas forças das ancestrais Que a lama me purifique Que o barro me edifique Pra que eu possa me levantar Peço a Ewa que faça o sol entrar pelas frestas do muro e do portão Que me deixe levar Purifique o peito de tanta mágoa e me conceda o horizonte pra me guiar. No quintal eu me sento Abro a esteira e me estendo A Oxóssi que é o meu lugar Arolê, Pai. Debaixo das folhas eu peço Me dê a palavra certa Peço a Ogum o caminho aberto Me ensina a me guiar. Troco a água acendo folhas e peço axé Te falo, minha irmã querida Se não fosse você aquela noite seria mais aflita Umas palavras trocadas podem curar Agradeço a você e àquelas outras Mulheres amadas que não andam à toa Grandes lobas farejam na vegetação Me ensinam com suas pegadas a caminhar A saltar, a uivar, a amar e a ser amada A sorrir e estender a mão Apesar de tudo Deitar no chão Acender a fogueira e luzir Ser luz na escuridão Nessa distancia sigamos unidas Recolhidas no mesmo roncó Num barco que seja por nós guiado E nos leve a serenos mares Terras férteis, curadas por canções Mesmo de corpo trancadas Sigamos de almas plenas Livres e serenas Dando voltas no tempo Deixando o vento levar Nos encontrando lá e cá Catando pedaços, fragmentos conhecendo descansando e refazendo Vamos nos recolhendo e crescendo Girando mundo a nos encontrar Procurando o fim desses males Rezando pra Omolú no silêncio rodar essa terra e curar. Atotô! Safira Karina Reink Silva [[email protected]] etnografa os quintais do Jardim Belo Horizonte, bairro da região de Morro Agudo, Baixada Fluminense, observando a relação entre quintais, casas e corpos, dimensões imbricadas, mutuamente construídas, materializadas nestas espacialidades vivas que se conectam entre si através dos fluxos e narrativas de seus moradores. Os comentários estão fechados.
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AutoresAna Cláudia Teixeira de Lima, PPGHCS/COC/Fiocruz Arquivos
Novembro 2020
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