Em março deste ano, no início da pandemia no Brasil, inaugurei um documento em meu computador chamado “diário de um vetor”. Escrevi pouquíssimas vezes: quando tive que voltar do Rio de Janeiro para a casa de minha mãe no interior de Minas Gerais, quando Bolsonaro fez seu primeiro pronunciamento estapafúrdio chamando a Covid-19 de gripezinha, quando os conflitos entre “salvar a economia versus salvar pessoas” se acirraram, quando fui à Belo Horizonte e vi um jacaré na Lagoa da Pampulha. Escrevi também quando o Brasil atingiu a marca de quatro mil mortos e quando essa marca ultrapassou os quarenta mil. Hoje somam-se mais de cento e sessenta mil mortos no Brasil e mais de um milhão e trezentos no mundo. Já não acompanho esses números diariamente, nem o Google dá destaque a notícias sobre as mortes pela pandemia. A título de registro, a bola da vez são as vacinas, que despontam como única esperança. Desde março, muita coisa mudou. Comecei a pandemia me sentindo um vetor, uma assassina em potencial, capaz de transmitir o vírus sem querer, inclusive para desconhecidos. Depois, fui ao medo de eu mesma adoecer e de lá alternei entre o medo e o desejo, pois quem sabe assim poderia atingir a imunidade/liberdade. No início disso tudo, tive o ímpeto de tentar entender o que estava acontecendo, de registrar, de lutar. Salvei prints do twitter de Bruno Latour, discuti com pessoas na internet, ouvi podcasts, li sobre a pandemia de Gripe Espanhola, guardei os poemas enviados por países que cooperavam entre si com máscaras e outros equipamentos. Porém as grandes catástrofes não podem ser entendidas, nem há como estar completamente consciente nesses momentos. Ao longo dos meses senti que o mundo se desmantelava lá fora, mas a vida começava a dar indícios de seguir. Lembrei dos livros que li sobre a Segunda Guerra Mundial, das pessoas se casando no front soviético, de Anne Frank estudando em seu esconderijo, vivendo os dramas pessoais de seus treze anos. A capacidade da vida de seguir é brutal. Agora já se passaram nove meses e muitas pessoas voltaram às ruas, mas muitas permanecem em casa. Enquanto escrevo, impressiono-me com o quanto pôde acontecer nesse tempo, mesmo num mundo aparentemente parado. Parecem cenas longínquas os canais de Veneza limpos, as ruas de Nova Deli vazias. Penso em como vamos nos lembrar das ruas se enchendo de novo, das pessoas com máscaras personalizadas, dos jogos de futebol com as arquibancadas sem ninguém. Em meu “diário de um vetor”, escrevi sobre Donald Trump sem jamais imaginar que ele perderia as eleições deste ano. Não há mesmo como saber do futuro. Por enquanto, sigo sendo um vetor não sacrificável (como não é o caso dos visons que foram assassinados há pouco na Dinamarca). Além disso, sigo vítima em potencial. Durante esses nove meses, muitas vezes só queria deixar a peteca cair. Queria jogar a maldita peteca para bem longe. Mas o movimento da vida se impõe: se a peteca cai, a recolhemos do chão e continuamos o jogo. Ana Paula Rodrigues cursa o doutorado em Antropologia Social no Museu Nacional-UFRJ. Seu projeto de pesquisa e de tese é sobre a poesia do povo Xakriabá, Minas Gerais. É também poeta e lançou este ano seu primeiro livro infantil, intitulado "Vó Maria vai ao Rio". Para Luane Bento dos Santos Angústias e esperanças
Rondam a madrugada. Estamos em recolhimento, Ela disse Minha irmã de Iemanjá Trocando mensagens Cibernéticas espacialidades Fazem a gente se encontrar E a gente encontra alento Em musicas Sonhos Pesadelos Poemas e desenhos Livros e mensagens Amizades Irmandades que estão de alma presente Mas com o corpo noutro lugar E nem tão cedo a gente se encontra E nem tão cedo a gente se vê Quanto tempo, pois é Pois é, quanto tempo? Guenta a rotina Espera a vacina Sorte de quem está com os seus Entre os seus Quem tem uma turma dentro de casa Nem todo mundo tem Tem gente sofrendo De solidão ou de companhia Tem muita mulher aflita Mulher, menina, adulta e criança, Adoecida, esmorecida Com dor que não tem mais onde doer De hoje, de ontem De agora e de antes E do que está para acontecer Estamos recolhidas, presas em mundos de intimidades casas-paraíso ou casas-cativeiro-cruel ou casas-de-sempre, só alegria, trabalho, briga, barulho A gente segue vivendo a rotina comida, trabalho, criança, faxina correria, aflição, oração reza, reza reza pra não ficar doente não virar número num estado que dá de ombros e finge ser nada de mais Entre muros a vida continua, mas já mudou. Sem as idas e vindas Sem pendular de lá pra cá Sem a rua com sua euforia seu cansaço e prazer sua labuta bruta ônibus, trem dióxido, poluição, aflição, afobação cano de descarga, rodoviária sufoco lotação supervia amendoim, é três por um real sinal sono e simpatia estação, travessia e construção. A rua saiu da rotina Virou exceção A rua ainda mais suja Mascarada Apressada Desconfiada A rua é contaminação “Sai que eu tô de rua!” Grita a vizinha Pro netinho e pra netinha Bem em frente ao seu portão. A rua é perigosa Normalmente Pra muita gente Inda mais se é preto se é mulher se é do candomblé se é o que é. Umbanda, quimbanda, batuque Filho de toda gira Se anda com suas guias Sabe bem como é andar Alerta, assustado Traçando um atravessado olhar do outro lado transeunte apavorado atravessando a rua pra não cruzar E se vive nas quebradas parado na esquina Sabe que é padrão Desviar do camburão Sirene apagada, Chega do nada Pronto pra te pegar. Pra muita gente A rua já é medonha Risco já é normalmente Mas agora somou problema Por fora do esquema Um troço que não se vê Que circula na comunidade Risco maior pra quem não crê Calado por dias cresce em você rodopia e dá voltas Entra na casa Sem ser convidada Invade teu quintal Chega em quem não devia Em quem te dá a mão Vem de quem nem pressentia O risco de sair Pôr o nariz pra fora do portão Vai naqueles que tu mais abraça Beija Alimenta Amamenta Ama Acalenta Galera que dorme contigo Que divide um sentimento come, brinca e faz festa chora e ri Mas o clima agora não é de festa Festa é “a-g-l-om-e-r-a-ç-ã-o” (Soletre-se, para caber no entendimento!) Inverno rigoroso Hora de hibernação De fugir da confusão criança não deve sair Brincadeira, correria: não. É coisa de menos fazer “Não tome vento, menina” “Fica em casa que a noite está fria” (O dia também) E aquela gripe, resfriado, rinite Escarro, tosse, coriza Meleca de toda guisa Traz nova preocupação Estamos recolhidas Com nossas almas reunidas E me vi assim também Falo comigo mais a cada dia E transito entre espaços e tempos Becos e vielas Portas trilhas e tramelas Traçados na memória Tanta história Tantos gritos Tantos medos Silêncios, fugas, esquecimentos perdidos, escondidos, enterrados nos cantos, ocultos no vão São chaves velhas sangrando na mão Portas trancadas Baús de Retalhos Mofo nos agasalhos Espalho tudo no chão Tento refazer meus passos Minh’alma viaja Por dias e horas vagas Por tantos lugares Viajo e me encontro Me encaro de lá Com outras caras Outras máscaras Risos, sorrisos e lágrimas Poucos mapas Tantas feridas Abertas, secretas Estilhaços que ainda Circulam e ardem no caminhar Pra dor não me pegar de surpresa Tento manter a vela acesa Pra Orixá me guiar Pra não perder a sanidade Pra não me amargar na maldade Das lembranças que nem queria lembrar É tanta doença que esse mundo tem pra tratar Nestes dias de isolamento Meu rebento é o sol e eu sou um lamento Ter uma cria é riso É motivo pra continuar. Me banho na luz e feito borboleta Peço a Iansã que me leve no vento Pra fora de mim, me deixe viajar Que me mude o pensamento Invada meu coração Me permita voar Peço a Iemanjá, Odoiá que me venha com água fria O ori me molhar que o mar me alimente com uma canção ao fim do dia acalente o coração A Oxum imploro que me geste me embale, Mãe me renasça Oraieie A Nanã que me enraíze nas forças das ancestrais Que a lama me purifique Que o barro me edifique Pra que eu possa me levantar Peço a Ewa que faça o sol entrar pelas frestas do muro e do portão Que me deixe levar Purifique o peito de tanta mágoa e me conceda o horizonte pra me guiar. No quintal eu me sento Abro a esteira e me estendo A Oxóssi que é o meu lugar Arolê, Pai. Debaixo das folhas eu peço Me dê a palavra certa Peço a Ogum o caminho aberto Me ensina a me guiar. Troco a água acendo folhas e peço axé Te falo, minha irmã querida Se não fosse você aquela noite seria mais aflita Umas palavras trocadas podem curar Agradeço a você e àquelas outras Mulheres amadas que não andam à toa Grandes lobas farejam na vegetação Me ensinam com suas pegadas a caminhar A saltar, a uivar, a amar e a ser amada A sorrir e estender a mão Apesar de tudo Deitar no chão Acender a fogueira e luzir Ser luz na escuridão Nessa distancia sigamos unidas Recolhidas no mesmo roncó Num barco que seja por nós guiado E nos leve a serenos mares Terras férteis, curadas por canções Mesmo de corpo trancadas Sigamos de almas plenas Livres e serenas Dando voltas no tempo Deixando o vento levar Nos encontrando lá e cá Catando pedaços, fragmentos conhecendo descansando e refazendo Vamos nos recolhendo e crescendo Girando mundo a nos encontrar Procurando o fim desses males Rezando pra Omolú no silêncio rodar essa terra e curar. Atotô! Safira Karina Reink Silva [[email protected]] etnografa os quintais do Jardim Belo Horizonte, bairro da região de Morro Agudo, Baixada Fluminense, observando a relação entre quintais, casas e corpos, dimensões imbricadas, mutuamente construídas, materializadas nestas espacialidades vivas que se conectam entre si através dos fluxos e narrativas de seus moradores. No final de 2019, surgiram na China os primeiros casos da COVID-19, doença causada pela novo corona vírus que logo se espalhou pelo restante do mundo. Escrevo esse texto em novembro de 2020 e a doença ainda está presente e é um desafio diário lidar com ela. Várias dimensões da minha vida têm sido atravessadas por essa situação. Há muito tempo, por exemplo, não reservava um tempo para me dedicar à escrita livre, ou seja, fora do jargão acadêmico usual ao qual me dedico desde 2010, ano em que iniciei minha graduação. Sempre gostei de escrever poesia, contos, crônicas. No início da quarentena, pensei em usar todo o disponível para escrever novamente. O que planejei não ocorreu. Passei dias e dias, como costumo dizer: avulso. Literalmente, jogado, sem conseguir cumprir alguns prazos, sem nem mesmo conseguir responder aos amigos que me enviavam memes – que tanto gosto, via Facebook ou WhasApp. Às vezes eu sentia muita culpa – confesso que ainda sinto, mas com menos frequência. Em outras ocasiões, tentei entender a situação e ser generoso comigo mesmo. Somente mais recentemente, em que estamos otimistas quanto à espera por uma vacina, é que me senti confortável para voltar aos meus ensaios livres, ao que gosto de fazer. A insegurança que esse ano tem representado por vezes me dominou e me atordoou. Mas não tem problema! A atual situação, apesar das epidemias serem frequentes na história humana, tornou 2020 um ano sem precedentes na vida de qualquer pessoa. A ponto de nem mesmo os nossos pais, por exemplo, que no meu caso são as pessoas com quem me sinto em segurança, terem vivenciado experiência parecida ou possuírem referências para nos consolar. Assim, muitas saídas e soluções para ansiedades foram construídas (e ainda estão) de forma conjunta. É por isso que nesse desabafo agradeço as pessoas especiais que, de perto ou de longe, diante do isolamento que a situação atual pede, tem sido pacientes e parcerias leves nessa caminhada. Tempos de pandemia tem nos ensinado que ser criativo ou produtivo pode simplesmente significar sobreviver. Do lado de cá, eu seguirei tentando, deixando a beleza e a poesia, a qual tanto pretendi me dedicar no início da quarenta, a cargo de Guimarães Rosa, que não errou quando disse que “a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”. Beijos e abraços!Clique aqui para editar. Sobre o autor: Ramon Feliphe de Souza é doutorando do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde, e estuda temas ligados à História do Norte de Minas Gerais, as relações entre ferrovias, meio ambiente e saúde, a Ação Social da Igreja Católica no século XX e o envolvimento desta instituição no apoio a programas de desenvolvimento rural no Brasil. E-mail: [email protected]
Rio de Janeiro, 23 de outubro de 2020, ano pandêmico. Uma das coisas que nós, pós-graduandos, mais temos que lidar são os prazos. No mestrado, vinte e quatro meses contados para terminar. No doutorado, quarenta e oito meses. Tem prazo do exame que chamamos de qualificação - recomendado que ocorra na metade do tempo total do curso. Tem prazo para entrega de trabalhos de disciplina, geralmente um mês depois que o curso acaba. Tem prazo também para submissão de artigos para revistas acadêmicas, para inscrição em congressos e simpósios, para envio do texto completo, para envio de relatório interno, para atos administrativos do curso, ufa! Se quiser, também podemos contar com o prazo de inscrição no processo seletivo para ingresso no curso de mestrado e doutorado - talvez um dos primeiros e mais corridos. Enfim, prazos e mais prazos. Mas qual é o prazo da pandemia? Consigo enxergar a preocupação com o prazo da pandemia quando meus pais, meus mais velhos, perguntam “quando isso vai acabar?” ou “rezo para que isso termine logo”. Quando minhas sobrinhas de dez anos de idade, gêmeas, minhas mais novas, dizem “a quarentena é muito chata, será que acaba no próximo mês?”. Meus mais velhos e minhas mais novas são referências para mim nesse momento. A paciência de minha mãe em tornar nosso espaço um lugar de bem-estar junto ao futuro visto explicitamente nos olhos de minhas sobrinhas são algumas coisas que me fazem seguir. Um misto de desespero (sim! é desesperador!) e esperança (seria essa palavra?) marcam esse momento pra mim. É desesperador ver um projeto de genocídio de jovens negros oportunizado com um vírus pelo Estado. Como o que vimos, o que vemos e o que tragicamente aguardamos ver. O que vi: um querido eterno aluno tendo sua vida retirada pelas mãos do Estado. O nome dele é Rodrigo - Uma vida . O que ouvi: os tiros das armas protocoladas pelo Estado que tiraram a vida de Matheus na esquina de minha rua. A esperança… ela tá aqui, mas ela é mais difícil de ser expressa nessa linha. Mas a sensação de semanas atrás (ou meses?) na contagem perdida dos dias é que o prazo da pandemia foi prorrogado. Pra quando? Alguém poderia perguntar num grupo do whatsapp. Ninguém sabe. Sem resposta. Manifestação por justiça pelo assassinato de Matheus Oliveira, 23 anos, na rua São Miguel, Morro do Borel, Rio de Janeiro/RJ. (Foto: Jacques Pinto, junho/2020) Parede de quarto: Nada é tão nosso quanto os nossos sonhos. (Foto: Jacques Pinto, abril/2020) Autorretrato: selfie. (Foto: Jacques Pinto, outubro/2020). Trabalhar com prazo, mas sem sabê-lo. No meio da pós-graduação, isso não existe - inclusive os prazos estão aí, o relógio da pós-graduação não para. O calendário tá acessível. A avaliação já está marcada. Apesar disso, o prazo da pandemia não sabemos. E aí, o que fazer? E acho que esse é o verbo: fazer. O que dá pra fazer num prazo prorrogado e indeterminado como esse? Dá pra ter prazer? Dá pra não se desesperar? Dá pra não se isolar ainda mais? Poderia falar aqui sobre como estou tentando burlar as ansiedades, existir dentro desse espaço da pós-graduação no contexto da pandemia que me é resistência muito antes do vírus chegar, explicar como substituir conversas de café, corredor e ônibus por ligações e mensagens para criar e manter laços. Mas o que dá vontade de fazer é perguntar mais uma vez: qual é o prazo? Qual é o prazo pra esse inferno acabar? Com o prazo da pandemia prorrogado, ao invés do alívio que poderia surgir caso fosse da entrega de um relatório, a ansiedade misturada com desânimo aumenta. Para alguns, parece que o prazo terminou há um ou dois meses atrás, mas pera aí? Ninguém avisou? Ela vai acabar. Mas os outros prazos de outros infernos na terra irão acabar também? Já me senti durante esse período como se estivesse dentro do túnel dos irmãos Rebouças no sentido Zona Norte (fugindo do planeta de aparência branca chamado Lagoa). Naquela galeria maior, num trânsito infernal, no calor do verão carioca, ônibus lotado sem ventilação, suor escorrendo pelas costas enquanto seguro a mochila pesada, tentando ver literalmente pela brecha entre as pessoas a luz do fim do túnel. Me sinto numa curva pela sensação do tempo já transcorrida que dá a ideia de que a abertura está lá, mas ainda distante. Túnel Rebouças. (Foto: Gaban. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Túnel_Rebouças . Acesso: outubro/2020) Vamos seguindo do jeito que dá. Tem gente que vai dizer que o pior já passou. Mas aí vem uma pergunta: o que é o pior pra você? Fico no aguardo se alguém descobrir o prazo. Sobre o autor: Jacques Ferreira Pinto, PPGHCS/COC-FIOCRUZ, 23/10/2020, Rio de Janeiro/RJ. Atualmente na tese de doutorado, pesquiso a busca por liberdade de africanos e seus descendentes escravizados por motivos de saúde e doenças numa comunidade rural chamada Vínculo do Jaguará em Minas Gerais durante o século XIX. E-mail para contato: [email protected] / @jacques.pinto.
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AutoresAna Cláudia Teixeira de Lima, PPGHCS/COC/Fiocruz Arquivos
Novembro 2020
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