O primeiro semestre do doutorado coincidiu com a pandemia de COVID-19.
Não faz muito tempo, no pouco longínquo 2017, à época mestranda, cursei a disciplina História das Doenças. Entre tantas experiências da doença, estudamos também duas pandêmicas: gripe espanhola e AIDS. Ambas ocorridas, com intervalo de cerca de seis décadas, no século XX. A experiência da AIDS, mais especificamente a de combate ao HIV/AIDS, é o meu objeto de pesquisa desde o mestrado. Por isso, eu tinha certa afinidade com os debates elencados sobre ela. No entanto, foi a primeira vez que estudei mais profundamente a gripe espanhola e seus desdobramentos catastróficos expressados, principalmente, na alta mortalidade e na interrupção do cotidiano. O que quero destacar, de um ponto de vista particular, é como, para mim, era inimaginável uma interrupção dessa magnitude no nosso cotidiano. Como conjecturar o isolamento social e a impossibilidade de aglomerações e de encontros presenciais? Vivenciar uma pandemia é muito diferente de estudá-la; e este texto resulta justamente dessa vivência. Embora eu more no Rio de Janeiro, estou passando a quarentena com a Larissa, minha namorada, e a Broinha, nossa cachorrinha, em Mariana, Minas Gerais. Em meados de março, vim visitá-las e não consegui voltar ao Rio. De qualquer forma, se eu não estivesse aqui, viria correndo. Minha mãe faz parte do grupo de risco do Covid-19 e uma pessoa a menos em um apartamento pequeno faz muita diferença. Ela é empregada doméstica e por conta da pandemia está trabalhando dois dias por semana. Apesar da jornada reduzida, o que nos deu certa tranquilidade, o sentimento de culpa por poder ficar em casa enquanto ela precisa sair para trabalhar é inevitável. A isto se soma a tristeza pelos que perderam a vida em virtude do Covid, a aflição diária gerada pelo número de mortes e de novos casos da doença e o quadro político do Brasil perpassado pelas desigualdades sociais e étnicas. O convívio com a Lari e a Broinha tem me ajudado a atravessar esse momento. Sem as duas, as coisas certamente seriam muito mais difíceis. Na medida do possível, os dias em Mariana têm sido tranquilos. Evidentemente, adaptamos a nossa rotina a situação pandêmica. De máscara e sempre respeitando o distanciamento, consigo, atualmente, sair duas vezes por dia para dar uma voltinha de cerca de 650 metros com a Broinha. Nos fins de semana, as ruas ficam muito movimentadas, não saímos. Em casa, já testamos inúmeras receitas (aprendi a fazer pão) e assistimos a praticamente todos os filmes do Studio Ghibli (entre tantos, recomendo A Viagem de Chihiro e Memórias de Ontem). Parte do meu planejamento para o primeiro semestre do doutorado não se concretizou. Inicialmente, o objetivo era me concentrar na bibliografia e na pesquisa no acervo da Coleção ABIA. Com a impossibilidade de ir ao arquivo, tenho me dedicado as leituras. Como Larissa e eu estamos no doutorado, há uma ajuda mútua e um esforço conjunto em manter a rotina de estudos. Isto é muito importante para mim, sempre fui uma aluna que precisa de constância, do estudo diário (exceto nos dias de descanso). Tenho seguido um cronograma de leitura, mantido o ritmo e amadurecido algumas ideias para a pesquisa. Evidentemente, há dias em que não consigo render muito. Quando isso acontece, respeito os meus limites e tento não alimentar um sentimento de culpa por um dia academicamente não tão produtivo. A quarentena tem ensejado uma série de reflexões e a retomada de duas grandes paixões: a literatura e a música. Encarei Laranja Mecânica e sua linguagem própria, voltei a me sentir desafiada por Agatha Christie, fiquei inquieta com Fahrenheit 451. Ah, a música! Das artes, ela é o meu grande amor. Revisitei tanta gente que gosto e conheci uma galera muito legal. Meu violão e eu estamos muito próximos, não sou uma musicista, mas ele e eu nos entendemos. Confesso que sinto falta de uma guitarra, mas nada que tocar violão sob o céu de Minas em uma noite de lua cheia não resolva. Voltar a fazer aula de música e dedicar-me com afinco ao violão e a guitarra são resoluções pós-pandemia. A experiência da quarentena e da pandemia também reiterou algumas convicções. Fiquei feliz por não precisar passar por ela para entender como, para mim, é importante estar e confraternizar com as pessoas que amo, valorizar a natureza, fazer trilhas, praticar esportes coletivos, nadar, ir à praia, ao bar e a São Januário torcer pelo Vasco. Eu adoro The Cranberries. As músicas da banda têm sido grandes companheiras minhas na quarentena; ora ouvindo-as, ora tocando-as. De modo especial, tenho ficado presa à estrofe inicial de Dreams: “Oh, my life Is changing everyday In every possible way” “Oh, minha vida Está mudando todos os dias De todas as maneiras possíveis” Esse verso expressa bem o que tem sido, para mim, a experiência da quarentena. Ela não é monótona; ela é instável e inconstante; ela me assusta. Entretanto, estou tentando lidar com ela da melhor forma que posso e que consigo. Sobre a autora: Doutoranda em História (PPGHCS/COC/Fiocruz). No mestrado, pesquisei a organização do movimento LGBTI da cidade do Rio de Janeiro para combater o HIV/Aids. No doutorado, pesquiso os impactos de políticas conservadoras e da LGBTIfobia na resposta brasileira ao HIV/Aids entre os anos de 1996 e 2019. E-mail: [email protected] Os comentários estão fechados.
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AutoresAna Cláudia Teixeira de Lima, PPGHCS/COC/Fiocruz Arquivos
Novembro 2020
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