![]() Introdução O presente texto busca apresentar uma linha de tempo de como os Maraguá do Rio Abacaxis vivenciaram a pandemia do novo corona vírus durante os primeiros cinco meses de 2020. Os Maraguá são um povo arawak que reside no interflúvio dos rios Madeira e Tapajós, nos rios Abacaxis, Curupira, Urariá e Paracuni, estado do Amazonas, região dos municípios de Nova Olinda do Norte, Borba e Maués, respectivamente.[1] A prima da gripe No dia 20 de janeiro de 2020, uma lancha da prefeitura de Nova Olinda do Norte viajou até duas aldeias do povo Maraguá (São José e Terra Preta) localizadas no Rio Abacaxis. Lá, os funcionários da prefeitura ergueram uma placa informando a construção de duas escolas indígenas pelo município, com início naquela mesma data e término no dia vinte de março. Depois, os funcionários foram embora por duas semanas e... nada mais aconteceu. Por algumas semanas, os Maraguá se perguntaram o que tinha acontecido e se essa obra ia, de fato, acontecer. No início de fevereiro, um barco trouxe um grupo de trabalhadores para ambas as aldeias, algo que não foi inicialmente muito bem visto pelos Maraguá. Havia um desejo de que os próprios indígenas fossem contratados para construírem sua escola, algo que seria mais barato para o município e que ao mesmo tempo geraria uma renda para os moradores. Alguns conflitos, inclusive, surgiram acerca de quantos trabalhadores de cada família e de cada aldeia poderiam ser contratados. Foi em uma visita para discutir a contratação de seu filho para trabalhar na obra que o AIS[2] e cacique da comunidade Pilão me perguntou se salsicha era “carne de chinês”. Teriam mostrado para ele um vídeo de uma fábrica de salsichas na China onde os próprios trabalhadores serviam como matéria prima. Comentou que se é assim que os chineses fazem, deve ser daí que surgiu essa nova doença, esse tal de coronavírus. No início de março, e com a chegada da doença em Manaus, famílias que moravam em Nova Olinda começaram a se mudar para as aldeias. Esse foi um processo que se acelerou rapidamente quando as aulas foram canceladas no dia 10 deste mesmo mês, pois um dos grandes motivos que resulta na mudança de famílias Maraguá para a cidade é a necessidade de encontrar escolas para seus filhos, especialmente os adolescentes, já que o segundo grau é oferecido apenas em Nova Olinda. Na medida em que mais indígenas chegavam, a capacidade das comunidades de providenciarem alimentos começou a ser dificultada, já que muitos vinham sem as ferramentas necessárias para obter seu sustento (anzol, canoa, redes de pesca etc.), além de não possuírem roçados (algo que demora meses para abrir, e que só é feito entre julho e agosto). Pior, os primeiros meses do ano são conhecidos como o inverno amazônico (quando os rios sobem e transbordam suas margens), já sendo uma época de escassez. Porém, as normas de hospitalidade e reciprocidade levava a fome a ser distribuída de forma relativamente igualitária, já que, tão logo a farinha de uma família acabava, pegavam ‘emprestado’ de outra. No final de março, durante a noite de sábado, uma reunião foi chamada pelo cacique-geral, cujo principal tema era a pandemia. Após a discussão, duas decisões foram tomadas. Primeiro, todos iriam permanecer na aldeia e não viajariam mais para a cidade. Segundo, iriam solicitar que a obra parasse e os trabalhadores se retirassem até o final da pandemia. Nessa reunião também se tornou claro como, ao invés de termos como ‘Covid-19’ ou ‘novo coronavírus’, os Maraguá referenciavam-se à doença como ‘a corona’, considerada a prima da gripe. Como uma senhora Maraguá alertou para mim, “sai da chuva porque a corona é a prima da gripe”. Naquela mesma noite, três homens que estavam presente na reunião viajaram para Nova Olinda do Norte. O cenário de escassez combinado com a necessidade de receberem benefícios sociais regularmente os colocou em uma situação em que decidiram ser necessário fazer compras na cidade.[3] Uma semana depois, os trabalhadores da obra voltaram. O dono da empresa que realizava a obra havia prometido que todos os trabalhadores haviam feito o teste na cidade e que nenhum estava infectado com o novo coronavírus. Os Maraguá sabiam que isso era uma mentira, porque pessoas suspeitas de haver contraído a doença eram levadas até Manaus para serem testadas. Porém, o barco que trouxe os trabalhadores carregava um motor de luz que os Maraguá da comunidade Terra Preta haviam recebido mas nunca tinham conseguido transportar para sua aldeia. Sendo assim, fingiram acreditar. Na manhã do primeiro sábado de abril, um debate teológico ocorria dentro de uma igreja adventista da aldeia Terra Preta. Um senhor recém-chegado de Nova Olinda do Norte lamentava que as igrejas da cidade tinham sido fechadas e proclamava aos congregados que não temia esse vírus que estava se espalhando por aí e que caso alguém tentasse colocar-lhe uma máscara, a jogaria no chão, pois esse senhor tinha Jesus no corpo e ele o protegeria. Mais tarde, um outro senhor cautelosamente afirmou aos presentes que só porque tinha fé em Deus não iria parar de se resguardar, afirmando que só porque era crente não iria “virar de lado para um banzeiro”.[4] Já o indígena encarregado de pregar o sermão no serviço daquele sábado afirmou aos presentes que tinham muita sorte de ter a oportunidade de viver no final dos tempos. ‘A corona’ era mais um exemplo do poder da Bíblia de prever tudo o que está por vir. Como um Maraguá da comunidade Maruim me disse, elucidando um sentimento manifestado por muitos, “isso ai são as escrituras se realizando. O que está no Apocalipse. As visões de João”. No dia 20 de abril, o primeiro caso de coronavírus foi confirmado em Nova Olinda. No mesmo dia, uma fila de mais de quinhentas pessoas formou-se para receber o novo benefício anunciado pelo governo federal. O cacique do São José viajou até Terra Preta para conversar com o cacique-geral, e juntos mais uma vez exigiram que os trabalhadores se retirassem e que a obra fosse paralisada. A doença que começou na China, que matava mais de mil por mês na Europa e que tinha começado a matar em Manaus, também havia chegado no município. Ficou claro que os Maraguá concebiam a doença como uma frente, algo que começou no outro lado do mundo e que vinha se aproximando do Rio Abacaxis, e agora era necessário se isolar de novo. No domingo do dia 26 de Abril, os Maraguá fizeram uma comemoração tardia do dia do Índio, contando com a presença de moradores de todas as seis comunidades do Rio Abacaxis.[5] A comemoração também serviu como despedida para os trabalhadores, que concordaram com a paralisação da obra. Estes, inclusive, participaram de algumas das competições, como a corrida carregando toras de madeira e a luta piãguá.[6] Quando perguntados que clã representavam, responderam jocosamente que eram do “clã da construção”.[7] Um barco madeireiro tentou passar pela comunidade enquanto a comemoração ocorria, o que levou o cacique geral a convocar os presentes para irem juntos pararem a embarcação. Usando o barco da obra, os trabalhadores junto com os indígenas abordaram a embarcação pesqueira e exigiram que voltasse, algo que foi interpretado pelo cacique do São José como uma intervenção divina (os madeireiros ter tentado entrar justamente quando estavam todos reunidos na mesma aldeia). Ao anoitecer, um dos empregados da obra, ao embarcar, proclamou ter sido uma honra ter trabalhado nessa comunidade. Uma semana depois, no início de maio, os trabalhadores estavam de volta. O dono da empresa teria ficado contrariado com mais uma paralisação e estava determinado a terminar a obra, que já estava atrasada. O empresário argumentou que, sendo 2020 um ano eleitoral, a obra precisava ser encerrada até o mês de junho, então não havia mais como esperar passar a pandemia. Mais uma vez, afirmou que os trabalhadores todos tinham sido testados, porém, dessa vez, os indígenas estavam muito menos dispostos a acreditar na mesma história. O barco carregando os trabalhadores chegou de noite de forma inesperada, e uma discussão acirrada começou entre os Maraguá da comunidade e os empregados da obra, que afirmavam estarem apenas seguindo as ordens do seu patrão. O mesmo senhor Maraguá que havia pregado o sermão sobre a felicidade de viver no final dos tempos desatou a corda do barco da obra,[8] porém um confronto físico foi evitado. Nesse dia, porém, o cacique geral não esteve presente para conversar com os trabalhadores. Quando o primeiro caso foi confirmado em Nova Olinda do Norte, ele, junto com vários membros de sua família, começou a criar uma nova comunidade em um igarapé chamado Mereré.[9] O Mereré fica mais acima no curso do rio Abacaxis do que qualquer outra comunidade, ou seja, é mais distante da cidade do que qualquer outra comunidade já existente. Quando conversei com o irmão do cacique geral, este disse que é exatamente isso que os seus antepassados fizeram quando foram escapar da Varíola e depois do Paludismo. Isolavam-se e se distanciavam espacialmente da doença. Epidemias são com frequência descritas como existindo em uma espécie de contínuo, como se fossem novas iterações do mesmo ente e não patologias discretas. Sendo assim, agora iam fazer como os antigos fizeram e se isolar mais uma vez. No dia 7 de maio, o primeiro óbito por COVID-19 foi registrado em Nova Olinda do Norte. Muitos dos jovens e adolescentes que haviam saído para cursar o segundo grau ou faculdade em Manaus não conseguiram voltar devido aos municípios terem paralisado o trânsito fluvial de passageiros. Muitos destes começaram a contrair a doença, e pais preocupados tentavam se comunicar com seus filhos por meio de alguns poucos pontos de internet via satélite. Uma lancha da prefeitura apareceu para fiscalizar a obra no Terra Preta, o que provocou uma corrida dos moradores para longe da beira do rio, gritando que deveriam evitar aglomerações. Nesse mesmo período, algumas pessoas nas aldeias do Maruim, Pilão e Kãwera começaram a reclamar de uma virose que estaria infectando-os, mas que não acreditavam ser ‘a corona’. No dia 29 de maio, dois indígenas da aldeia São José em estado grave foram levados para Nova Olinda do Norte. Ambos os casos foram confirmados como infectados pelo novo coronavírus. Pelo mesmo nesses casos, a virose transformou-se em ‘a corona’, e logo foi constatado que virtualmente todos os habitantes do Maruim e São José estavam infectados. Durante a semana, mais quinze Maraguá chegaram da cidade somente na aldeia Terra Preta, enquanto três famílias saíram da mesma rumo ao Mereré. Algumas vezes escutei comentários sobre a ironia da situação em que se encontrava a obra. Após anos exigindo uma escola indígena do município, justo agora, quando a construção estava quase terminada, estavam todos abandonando a aldeia e se isolando rio acima. Na manhã do dia 30 de maio, após o culto em sua igreja, indígenas da aldeia Terra Preta improvisaram uma rápida reunião. Foi proposto criarem uma aldeia somente para idosos, para quem levariam comida regularmente e nenhum contato seria permitido. Os idosos, porém, não se demonstraram muito alegres com a ideia de uma quarentena indefinida. O mesmo senhor que havia feito a metáfora sobre não virar sua canoa de lado para um banzeiro refletiu com os outros sobre como esse vírus tinha começado de tão longe, lá da China, e estava chegando cada vez mais perto. A razão para isso seria a descrença, não tanto em Deus, mas naquilo que todos sabiam que deveriam fazer. Teimavam no erro e agora ‘a corona’ chegou até eles. Conclusão Enquanto espero o barco da construção vir (pois ele se tornou minha única forma de egresso do rio Abacaxis, uma vez que o cacique geral mais uma vez exigiu que nenhum Maraguá fosse para a cidade), venho refletindo naquilo que disse esse senhor. Múltiplas vezes os Maraguá tentaram fazer aquilo que era dito para eles ser o ‘certo’: tentaram impedir viagens à cidade, paralisar a obra e agora estavam mais uma vez isolando-se rio acima. Porém, essas iniciativas não eram vistas como prioridades absolutas; eram flexionadas pelas circunstâncias em que se encontravam (o motor de luz, a fome etc.). Não desdenharam do perigo da doença; ao contrário, concebem-na como a mais nova manifestação das epidemias que vêm dizimando seu povo ao longo do tempo, enquanto também a consideram como evidência do fim do tempo. As escolas estão quase terminadas. Resta saber se ainda haverá alguém morando por perto delas. Gabriel Soares, no segundo ano de doutorado no PPGAS/MN, realiza pesquisa junto ao povo Maraguá, que vive em seis aldeias no rio Abacaxis, próximo ao rio Madeira, estado de Amazonas. Gabriel se propõe a escrever uma etnografia exaustiva e inédita dos Maraguá, grupo indígena que reivindica o reconhecimento de sua identidade e de seus direitos territoriais. [1] Esse texto foi redigido durante minha estadia em campo entre os Maraguá do Rio Abacaxis ele infelizmente carece de referências bibliográficas. [2] Assistente Indígena de Saúde. [3] O benefício do programa Bolsa Família requer que o recipiente acesse o valor periodicamente. Caso o beneficiado passe um período de mais de dois meses sem o acessar, o benefício é interditado. [4] Banzeiro é um termo regional para uma ventania, correnteza ou maré. Virar de lado para um banzeiro coloca a embarcação em risco porque o ângulo perpendicular aumenta a chance do barco ou canoa capotar. [5] Terra Preta, Kãwera, São José, Pilão, Maruim, Santa Terezinha. [6] O piãguá envolve dois círculos concêntricos; o objetivo é ou empurrar o oponente para fora do círculo ou jogá-lo de costas para o chão. [7] Clãs não são mantidos por todos, mas em termos gerais os Maraguá se dividem em oito clãs preferencialmente matrilineares: Sucuri, Onça, Lontra, Gavião, Vespa, Boto, Peixe-elétrico e Mutum. [8] Desatar a corda de um barco (ou de uma rede) é como o gesto de recusa de hospitalidade por excelência entre muitos povos Amazônicos. [9] Igarapé é um afluente de um rio principal. Os comentários estão fechados.
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AutoresAna Cláudia Teixeira de Lima, PPGHCS/COC/Fiocruz Arquivos
Novembro 2020
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