A ilusão de estar sozinha, desacompanhada e/ou isolada nos meus sofrimentos e nos meus angustiantes e inescapáveis defeitos é uma daquelas coisas imemoriais que me acompanham desde que me entendo por gente. É difícil contar as vezes em que o fato de que outras pessoas passam por dilemas parecidos – ou melhor, de que passam por dilemas extremamente diferentes de mim, mas que compartilham sentimentos ou reações do mesmo tipo que os meus – se vestiu de revelação bombástica na minha vida. Tal re-realização, conhecimento esquecido (pois a vida parece tantas vezes um relembrar-se) era então acompanhada de um curto suspiro envergonhado de minha parte, frente minha caída na armadilha da crença na excepcionalidade. Talvez seja síndrome de filha única, pensei, ou meus pézinhos nas águas da depressão e ansiedade. A verdade é que poder compartilhar com outras pessoas as similaridades e diferenças na forma de viver, sentir e agir é o presente mais cativante que (re)descubro durante minha existência. Esse comunicar-se nunca deixa de me fascinar.
Ao receber o convite para a escrita de um texto sobre a pandemia, minha primeira reação instintiva, admito, é a preguiça. Mais que tudo, formular minha experiência em palavras que serão lidas por outras e outros carrega ainda um elemento levemente aterrorizante, independentemente do quanto escrevo ou quão mais velha fico. De novo, porém, o que ou quem me salva são as Outras e Outros, seres humanos que tenho o privilégio de conviver, mesmo que de formas aparentemente superficiais, como um texto. Nos relatos de alunos da Fiocruz e do PPGAS sobre pesquisa e vida na pandemia, por exemplo, vejo reflexos de minha experiência pessoal do momento, assim como evidências de situações muito diferentes da minha, sublinhadas sempre por um instinto louvável e ousado de partilha e de auto-expressão. Isso me inspira: a mistura do diferente e do parecido, e a prevalência de um impulso corajoso de narrar a própria história, de presentear sua vulnerabilidade para o coletivo – através do relato das resistências inventadas frente aos demônios interiores e exteriores que nos assolam (do vírus e do governo em ruínas, da falta de previsibilidade e rotina, ao isolamento e preocupação com entes queridos, e, algumas vezes, até a garantia da sobrevivência de si, de sua casa e seu povo). A sensação de compartilhamento me desafia e sempre me surpreende deliciosamente. Tenho aproveitado também dos encontros virtuais com alunos do LAH, laboratório de antropologia do qual faço parte no Museu Nacional. Nele, minhas e meus colegas às vezes contam um pouco sobre suas pesquisas, vidas pessoais, dilemas internos. Que privilégio é fazer parte desse microcosmo, reflito! Essa coragem me incentiva, por minha vez, a me expor um pouco também. Acredito que um dos maiores desafios desta quarentena para mim – do alto de meus privilégios como mulher branca, cis, hétero, de classe média, sem filhos para cuidar – tem talvez sido escapar de mim mesma, de minha cabeça, e de meus próprios pensamentos e limites. Há tempos sou ciente do efeito produzido em mim por longos tempos de enclausuramento dentro de casa, mas confesso que mesmo assim mantia, antes da pandemia, um sonho meio romantizado de uma cabana na floresta em que poderia ficar sozinha, escrevendo, lendo e refletindo, cumprindo todos meus afazeres atrasados meses afora. Bem bobinha, eu sei. Não mais. A inadequação do modelo individualista-capitalista do mundo moderno ocidental, que se alimenta desse pernicioso mito da autossuficiência, nunca me foi tão evidente, passando de uma concordância intelectual para uma convicção profundamente real. Percebo na carne e nos ossos que, para pensar e produzir, além de tempo, preciso de gente. Anseio pelo convívio e pela troca, assim como sinto falta de caminhar pelas ruas, de olhar a paisagem pela janela do ônibus ou do carro, e deixar meus pensamentos serem modelados pelas linhas montanhosas de Minas, pela praia no Rio, por um boteco lotado. Encaro cada vez mais com suspeita os insights demasiado solitários, mas ao mesmo tempo também não sei sempre lidar com o excesso de rotas de escape que pipocam de todo lado – como lives de autores famosos, livros gratuitos, e aulas online de ioga. Por melhores as intenções de criadoras, criadores e participantes desses muitos cursos e possibilidades, um senso de falsidade ou banalidade acompanha tais caminhos, relembrando um mercado estranho, uma pressão produtiva mascarada de auto-cuidado. A surrealidade da situação retorna, e pareço voltar ao lugar de início. Vivemos tempos estranhos. Por outro lado, porém, os privilégios desse tempo e de minha condição específica também ficam claros durante esse fase esquisita. Por exemplo: vivo junto a minha mãe, que pode continuar a trabalhar de casa, que está bem de saúde, e, principalmente, que me faz rir um pouco todos os dias. Estar no mesmo lugar por tempo prolongado, além disso, resgata um pouco aquele olhar de criança, que vê espaços apertados como grandiosos e se diverte ao cuidar das plantas e raspar a tinta da parede descascada. O pequeno ganha premência em geral, e há de se aproveitar o conforto de um bom café à tarde, das conversas por telefone e do não fazer nada. Mais que tudo, através de amigos e colegas e do privilégio tecnológico que comprime a distância geográfica, consigo, como disse, sair um pouco do meu estupor, e achar graça de profundas inseguranças – as minhas, as do mundo e as do momento. Enfrento a ansiedade e acordo para mais um dia: agradeço à multidão de presenças corajosas que insiste em se manifestar. Laura Lobato-Baars é mestranda em Antropologia Social pela UFRJ, Museu Nacional, PPGAS. Seu tema de pesquisa é a formação da população sino-afro laiap do Suriname, sob orientação de Olívia Gomes da Cunha. Email: [email protected]; enviado em 14/05/2020. Os comentários estão fechados.
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AutoresAna Cláudia Teixeira de Lima, PPGHCS/COC/Fiocruz Arquivos
Novembro 2020
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