Cara amiga,
Você lembra da última vez em que a gente se viu? Num boteco qualquer, sem prestar nenhuma atenção para quantas pessoas cabiam ou não na rua, se havia a distância de dois metros entre elas, passamos horas falando, decifrando, comentando, acusando. Faz muito tempo que não falo assim. Tenho a impressão de que a contradição entre o quanto falávamos, esperando o dia amanhecer, e a escassez de opções e asseio do boteco fosse proposital, como se o lugar falasse: oferecemos pouco para que vocês encontrem muito – conversem. Foi em bares assim que fortalecemos nossa amizade e colecionamos palavras, conceitos, críticas, posições. Agora que nós mesmos nos tornamos escassos, as palavras parecem minguar. Lembro com carinho os movimentos da mesa; uma dança de mãos e gestos que carregavam palavras para vislumbrar o contorno do mundo e dos seus movimentos. Entre uma reflexão informal e xingada sobre o que há ou não há, ou o que deveria existir, as mãos gesticulavam, pediam um isqueiro; ou alguém puxava o pacote de tabaco, ou tirava mais um cigarro do maço, que invariavelmente sempre estava acabando. Claro, toda essa série de movimentos, como tantas outras coisas, foi varrida pela pandemia. No intervalo de poucas semanas, entramos numa nova configuração das coisas, dos discursos, dos medos, principalmente dos movimentos, os quais só consigo identificar como: isso tudo aí. Você perceberá a ironia, imagino. Junto com aquele mundo que se foi, parece que se foi também a linguagem para descrevê-lo. Virei mudo, amiga. Não consigo discernir o mundo que está tomando vulto e o mundo de antes parece ter sumido sem nem um suspiro. Treinado anos a fio para (um dia, nos diziam) ser pago para falar sobre o mundo, percebo que não sei mais falar dele. Tomado por uma certa afasia fenomenológica, a minha escrita sobre o que está acontecendo tenta tomar outras formas, mesmo se precárias e cambaleantes. Tenho ao meu lado um diário, no qual, entre outras coisas, anoto meus sonhos. Agora, são marcados pela sensação de um retorno constante – permeados por ameaças físicas ou pelo reencontro com antigos amores, sempre acordo deles com o medo de que estou recebendo uma mensagem extraordinária, mas indecifrável. Às vezes acordo e, olhando para as mãos raladas de tanto serem lavadas, penso, “ah, então esse aqui sou eu”, como se, junto com a desconfiguração do mundo, eu também fosse perder meu contorno. Ou talvez eu finalmente esteja apreendendo minha própria forma – como diz o Evangelho, “os tempos da restauração de todas as coisas de que Deus falou...” Escrever no diário, sempre uma atividade noturna, acompanha outros rituais cada vez mais sussurrados. Vou para a varanda e fumo um cigarro. Sem camiseta, sento na cadeira da varanda, satisfeito de poder sentir a chegada do inverno e da seca. Seguro a respiração e tento ver se meu fôlego está bom. Logo depois, penso na ironia que é querer encarar uma doença respiratória fumando. Às vezes, rio sozinho. Tomo esse tempo como minha prece final do dia. Às vezes, falo; às vezes, não. Tento me ater ao conselho de Yamamoto Tsunetomo: “Deve-se meditar sobre a morte inevitável diariamente.” Tento me imaginar dentro daqueles sacos plásticos pretos, ou em caixões jogados numa vala comum, aterrados no lodo tropical de alguma cidade brasileira. Olho para fora e espio as constelações que ainda reconheço. O Escorpião está lá, por cima do prédio, e ainda consigo ver a pontinha do ferrão dele. Enquanto o cigarro queima, também viro para minhas plantas, entre as quais as mais novas são os alhos que brotei num copinho de água. Converso com eles, com as duas orquídeas. Arranco a pontinha de uma das folhas do alho e boto na boca. Percebo que também tem gosto de alho. Coço a barriga; acho que engordei. Tudo terminado, entro para dentro, escovo os dentes, deito-me. Uma noite dessas sonhei que estava numa cachoeira lá na chapada. Como outras que temos por aqui, essa também era feita do encontro de pedra bruta, cor de ferro e ocre, com a água gelada e antiga do cerrado. E em volta dessa comunhão antiga crescia a aroeira, a canela-de-ema, o chapéu-de-couro, a lobeira; nos galhos e nas copas, cantava o melro, o tico-tico, o canarinho-da-terra e o joão-de-barro. Tinha me afastado dos meus amigos e estava nadando numa seção do rio que era fechada pelos cânions de rocha. Eu olhava para os cantos, buscando sinal de atividade ou de presença humana e não encontrava nenhum. Deixando aquela água escura, cor de chá de barbatimão, levar-me por entre os paredões, imaginava ser o primeiro, ou talvez o último, ser humano a passar por lá. Naquele mundo mudo e surdo de fala de gente, eu dizia uma prece qualquer, introduzia uma voz humana no meio daquele borbulho primeval e depois ia embora. Ele voltava a ser silencioso de novo. De alguma forma, parecia ser uma redenção não ter que fazer sentido de um mundo, poder entregar seu início e fim para outras forças, outras criaturas, outro tempo. Ao contrário de hoje, em que o momento nos urge à ação, mas estamos presos em casa. Amiga, como são tristes nossos tempos! Que monstros são esses que nos atacam? Juro que se tivesse alguma resposta para isso, estaria escrita aqui. Mas não tenho. De qualquer forma, talvez seja bom por enquanto nos mantermos no silêncio. Acho que são impacientes aqueles que condenam o silêncio à apatia. Prefiro pensar que ele é, em parte, o início de uma grande greve espiritual da nossa geração. Estamos nos retraindo para as paisagens arruinadas dentro de nós, territórios abandonados a fio enquanto o mundo zumbia lá fora. Olhando bem agora, que temos um pouco mais de tempo, você não se lembra de como antes estávamos cansados? De como vivíamos em meio a um colapso mas era proibido – pelo otimismo desesperado de alguns, pelo cinismo de outros – chamá-lo pelo seu nome? As coisas estavam bem antes? Não, não estavam. Este momento de crise nos impele a uma decisão. Dois mil anos atrás, no canto do maior império que a Terra já tinha visto, um homem chamado Jesus decidiu passar quarenta dias no deserto. Sabia que no deserto as legiões não o alcançariam. Lugares assim geralmente rechaçam a arrogância imperial. Lá, como Moisés no Sinai, buscou falar com Deus e purgar-se de suas fraquezas. Foi tentado pelo Demônio, que o ofereceu, acima de tudo, um novo império. Sábio e forte, Jesus negou a oferta, ciente de que no final, até um imperador torna-se sacrifício para a fome de um Leviatã. Como o Mestre, também vivemos no fim de algo, amiga. Assim como ele, também estamos num deserto, numa quarentena física e espiritual. Então agora seria uma boa oportunidade para nos despirmos de toda a armadura que deixamos crescer em volta das nossas almas. Como tanto tempo atrás, naquele canto esquecido do império romano, surgem vozes do deserto, e que ressoam dos interiores esquecidos, das planícies abandonadas. Antes fracas e distantes, hoje elas são mais numerosas e próximas. Dizem: “o tempo de Roma se está acabando”; “o reino de Deus está próximo”, “este século não passará”. Nem todas são amigáveis, e no deserto vivem tanto profetas quanto charlatões. Caberá a nós, em silêncio ou no grito, decidir quais vozes ouvir. Até lá, talvez o tempo quieto, que contraria o ruído da transmissão ao vivo do desastre, nos lembre daquilo que é fundamentalmente bom. Pois Deus fala no quieto. E ele diz: “filhos, a Terra é a sua mãe, e ela é bela”; “dividir, multiplica”; “num pôr do sol, no canto sonâmbulo de um bacurau ou num dia passado junto com um amigo, nessas coisas mesmas brilha meu Reino; ele está distribuído pela Terra, mas os homens não o veem mais”. Espero que estas palavras lhe tranquilizem. Termino esta carta contando outro sonho. Como o Reino do Criador, é um sonho que tem mil formas e que viceja sobre toda a Terra, dentro e fora de nós, inundando nossas almas de alegria toda vez que vivemos a liberdade. Ele é como a mostarda de semente, que “cresce e se torna maior do que todas as hortaliças e deita grandes ramos, a ponto de as aves do céu poderem aninhar-se à sua sombra.” Tente mantê-lo próximo. O sonho é algo assim: Imagine que, passada a nossa época de tragédias, as pessoas no mundo serão do nosso sangue, do nosso cabelo, do nosso osso e da nossa pele. Ao redor das suas fogueiras, talvez contem lendas antiquíssimas sobre nós, a quarta ou a quinta humanidade, que acreditou ser um deus, ou um demônio. Ocasionalmente, talvez ao caminhar no final da tarde por paisagens totalmente desconhecidas, venham aos seus sábios imagens atávicas dos infernos que vivemos e das grandes catástrofes que se romperam por cima das nossas cabeças. Tomados por esse golpe de mágica, ouvirão gritos de crueldade e ódio, mas também histórias de grande coragem e amor, das enormes proezas conquistadas pelas multidões. Serão acometidos por um grande terror ao ver essas coisas. Mas será apenas uma memória. Erguendo-se, continuarão seu caminho de volta às suas aldeias e acampamentos, onde há sempre uma lareira queimando e a gente é feliz, porque sabe que, afinal de contas, foi tudo um pesadelo e que, como todo pesadelo, ele também chegou ao seu fim. Espero que nos vejamos em breve. Seu amigo, Felipe Moretti pesquisa os movimentos de Caldeirão e Pau de Colher, que se deram na década de 30 no Sertão nordestino. Interessa-se sobre como seus discursos podem oferecer-nos outras visões sobre a relação entre o humano, o divino e as temporalidades associadas ao fim do mundo. Acredita que, olhando assim para este passado recente e que foi violentamente destruído pelo Estado Novo varguista, possamos encontrar respostas para as questões dos nossos tempos, também assombrados pela mudança climática global e o colapso de regimes geopolíticos estabelecidos. Os comentários estão fechados.
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AutoresAna Cláudia Teixeira de Lima, PPGHCS/COC/Fiocruz Arquivos
Novembro 2020
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