- O que acho da pandemia coronavírus? A doença veio do país da China, do lugar chamado Wuhan. Esse vírus, esse kugihe, ele é muito forte, muito perigoso. Isso me assustou e me assusta muito. Vendo notícia na televisão, acompanho desde que saiu a primeira notícia que o vírus estava se espalhando na China, eu fiquei muito preocupado. Começaram a viajar, deixaram os voos de avião transitarem normalmente, começou a se espalhar rapidamente, para Itália, Estados Unidos, veio para o Brasil. Em 17 de fevereiro registraram o primeiro caso no Brasil. Isso nos deixou todos assustados, povos indígenas, lideranças. Essa doença, muitos dos mais velhos falaram que ia acontecer alguma coisa de ruim no mundo. O ano passado teve eclipse de lua, eclipse de sol, os mais velhos têm uma forma de interpretação, pelo formato da eclipse, falaram que ia ter uma coisa ruim, uma doença, para todos. Na eclipse teve muito do lado dos kagaiha(dos brancos) e muito pouco do nosso lado. O que está acontecendo confirma o que os mais velhos falavam. Muita gente está sofrendo, muita gente está morrendo. Isso me fez pensar muito. Sabemos como a nossa cultura funciona, mas não profundamente. Fiquei preocupado, precisamos manter essa observação das constelações, da natureza; os cantos dos pássaros avisam, ou coisa ruim ou coisa boa. Os mais velhos estão falando: “Está vendo? Isso já sabíamos”. - Quando teve a primeira morte no Brasil, FUNAI e ATIX (Associação Terra Indígena do Xingu) se reuniram e fizeram um documento como protocolo de segurança para ninguém entrar nas aldeias, uma forma de controlar a proliferação da doença. Os casos no Brasil foram aumentando e, então, o protocolo foi para ninguém entrar e ninguém sair (das aldeias). A ATIX se mobilizou e o Distrito (de Saúde Indígena) deu suporte para que as pessoas que moram em Canarana conseguissem combustível e fossem para as aldeias, fugindo da doença., se fechar na aldeia. Muitos saíram da cidade para as aldeias, outros preferiram ficar, os que já são mesmo moradores da cidade. Eu falei que ficaria em Gaúcha, pelo medo de levar doença. Lembrei da história quando os Kalapalo foram contaminados na década de cinquenta pelo sarampo, muita gente fugiu para as aldeias levando o vírus. Pensando nisso eu disse: “não vou para lá”. Minha família ficou preocupada, assim como a família da minha esposa. Se a gente levasse o vírus, seria uma tragédia, eu me sentiria muito culpado. Fiquei aqui. O pessoal ficou uns 15 dias fechado. Meu pai, que mora numa aldeia mehinaku, disse que parecia que estava tendo uma guerra, o sentimento ficou muito forte, muito medo, todos ficaram nas casas. Quando saiam para fora, ficavam com medo do vírus chegar pelo vento. Havia muitas informações e ninguém conseguia explicar direito. Fecharam a estrada dos Kalapalo que vai para Querência e Canarana. Depois começaram a sentir falta principalmente de combustível. Nas aldeias tem muitas motocicletas, estava acabando sabão, muitos dependem da alimentação da cidade. Isso fez com que começassem a quebrar a regra. Tem um grupo na ATIX que recebe denúncias contra os que querem sair para as cidades. Quando teve um caso suspeito em Querência, todos ficaram assustados, mas, mesmo assim, havia quem não queria obedecer. Em Canarana já teve um caso confirmado, curou, não tem notícia de outro, espero que não tenha. Tem uma minoria que não respeita a barreira. Alegam que precisa de combustível, sabão, café, principalmente, já viciou. Estamos tentando barrar, mas está difícil. - Aqui em Gaúcha ainda não tem suspeito, mas estamos em alerta, a entrada na cidade está controlada, mas a circulação é normal. Tem casos confirmados em Canarana, em Rondonópolis, União do Sul e a gente está no meio. Também em Paranatinga tem suspeito. Em Cuiabá está morrendo gente. Tem cinco mortos em Mato Grosso. A contaminação está aumentando. Aqui em Gaúcha, no começo queriam fechar tudo, mas depois houve protestos dos que dizem que dependem da venda, do comércio. Fizeram uma regra meio aberta., mas não funcionou. A polícia está atuando para evitar aglomerações. Eu particularmente estou meio fechado, mas a Câmara continua as atividades. Respeitamos a distância de um metro e meio. Continuamos as reuniões, mas agora fechadas ao público. Não tem movimento para as aldeias, mas continua vindo gente para cá, das aldeias mais próximas. Isso que está acontecendo. Mutua Mehinaku Kuikuro [[email protected]] é líder do povo Kuikuro, Alto Xingu, MT e, hoje, vereador da Assembleia Legislativa do Município de Gaúcha do Norte (MT), cidade próxima da Terra indígena do Xingu. Concluiu mestrado no PPGAS em 2010 com a dissertação “Tetsualü: pluralismo de línguas e pessoas no Alto Xingu”. Os comentários estão fechados.
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AutoresAna Cláudia Teixeira de Lima, PPGHCS/COC/Fiocruz Arquivos
Novembro 2020
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