escrevo para descarregar a tensão cotidiana. para tirar do meu corpo todo o peso dessa sobrecarga de medos e incertezas, que desgasta minhas emoções e mina minha saúde mental. mesmo que escrever seja esse ato de sobrevivência que me permite sentir leveza pelo menos na hora da escrita, do descarrego, ele não vem mais acontecendo durante esta pandemia. às vezes, busco sair de mim nas diversas atividades que posso vir a fazer dentro de casa. é verdade que também tento fugir de mim. estaria sendo hipócrita se não falasse sobre isso. afinal, num momento como este, o que a gente menos quer é estar aqui.
apesar dessas sensações diárias, que se repetem de maneiras tão exatas, busco olhar para esse momento e tentar acreditar que, quando tudo isso acabar, as coisas podem vir a melhorar. e não: antes de qualquer coisa, quero dizer que isso não se trata de tirar coisas boas desse momento. na verdade, a conjuntura só escancara nas nossas caras, por todos os meios possíveis, os nossos limites e os nossos fracassos como uma tal “humanidade” que foi elaborada e pensada por poucos, que não trata de todas e todos, mas apenas de uma certa parcela interessada nessa ideia que foi universalizada. é exatamente por isso que tendo a me assegurar de que, depois daqui, algumas coisas já não vão ser mais como eram antes. nada mais será como era antes, mesmo com a existência daqueles que tentam negar essa realidade e que apelam para uma ideia de “normalidade”, que também já não existe mais. o que é normal? o que era normal? e para quem?... os limites e fracassos desses projetos de sociedades e o que nós podemos fazer com isso são o que me permitem ficar de pé e me devolvem um pouco de sanidade e fé nas mudanças. isso porque, apesar dessas reflexões e sensações e modos de lidar dizerem respeito ao lugar social que estou ocupando no momento, às possibilidades de me manter em casa e de ter um certo recurso financeiro – que, por mais abaixo do que deveria ser, ainda me permite ter uma qualidade de alimentação melhor do que a que eu tinha antes, e do que muitos e muitas têm hoje –, e para além das demais problemáticas existentes que podem desembocar deste discurso, eu consigo sentir as transformações e a emergência de reflexões e propostas de alternativas a esse caos político-sócio-cultural-econômico-biológico e ambiental que estamos vivendo. são as apostas na solidariedade entre as diversas comunidades e coletivos que buscam se apoiar nesta crise e suas alianças, o envolvimento de milhões de pessoas que, por vários anos, décadas e gerações se distanciaram da esfera política por desprezo e não credibilidade e que agora estão se mobilizando para ajudar os seus semelhantes e seus diferentes, que me fazem ainda ter uma certa esperança. cabe destacar que não falo de “ajuda ao próximo” no sentido cristão – a quem servir esta ideia, que se apegue a ela para fazer algo. mas quando trato de ajuda ao outro, digo no sentido de se sentir responsável pela continuidade de vidas que não só as suas. e são esses esforços e o surgimento e a emergência de tantos outros que me fazem passar por esse momento, quando não estou vivenciando as sensações ruins que descrevi no começo deste texto, de forma mais consciente, estável e sã. espero que isso ajude a vocês a encontrar um feixe de esperança e de força em meio a tudo isso que estamos vivendo. sei que muitas são as possibilidades de interpretação para além do que eu descrevi aqui, e que as mesmas tendem a nos levar para um lado mais pessimista e angustiante. entretanto, uma coisa que essa quarentena nos ensinou é que é preciso nos apegarmos a algo para conseguir atravessá-la da forma menos adoecedora possível. e é isso que estou fazendo. tentando me manter confiante, por mais que eu ainda sangre todos os dias. Zwanga Nyack é mestrando em Antropologia Social do PPGAS/MN/UFRJ. Atualmente estuda a produção de conhecimento antropológico sobre relações em alguns programas de pós-graduação do Sudeste do país. E-mail: [email protected]. Local de residência: Fortaleza/CE - Brasil. Os comentários estão fechados.
|
AutoresAna Cláudia Teixeira de Lima, PPGHCS/COC/Fiocruz Arquivos
Novembro 2020
|