Era 13 de março de 2020. Estávamos na aldeia Nova Esperança, do povo Matsés, rio Curuçá, quando um informe iniciou as discussões daquele dia, na 6ª Assembleia Geral da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (UNIVAJA): a aproximação do coronavírus na região, registro de casos em Iquitos, Peru, e Cruzeiro do Sul, Acre. Na noite anterior, participantes da assembleia souberam da notícia pelo orelhão da aldeia e aproveitaram o início das atividades para dar o informe, chamando a atenção dos povos ali reunidos para o que estaria por vir – mesmo que ninguém tivesse a exata noção do que, de fato, estaria por vir. Afinal quem já tem essa noção hoje? Creio que ninguém, sobretudo no Brasil, onde enfrentamos duplo vírus, dupla crise: sanitária e política. Nessa movimentação toda, lá estavam os Korubo, a quem tenho acompanhado desde janeiro de 2019, povo indígena de língua pano, do ramo setentrional, considerados pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI) como ‘recente contato’, habitantes da Terra Indígena (TI) Vale do Javari, localizada no extremo oeste do Estado do Amazonas. Era a primeira vez que os Korubo participavam de uma assembleia do movimento indígena, apesar de serem constantemente mencionados em diversas discussões – seja por sua fragilidade enquanto recém-contatados, seja por sua bravura, ou ainda, pelos conflitos do passado envolvendo os não-indígenas. Os ‘caceteiros’ do Vale do Javari dessa vez estavam ali, e isso era motivo de comemoração generalizada. Conforme fizera ao longo de toda a assembleia, tentei explicar-lhes o informe da melhor maneira possível naquele momento: estava chegando uma gripe nova (toxoe paxa), disse eu, só que essa é diferente da que vocês começaram a conhecer e têm tanto pavor – pois sabem que quando um gripa, todo mundo gripa –, a gripe nova causa também falta de ar (xakanke). Instantaneamente, eles ficaram com aquele olhar, aquele mesmo olhar que usam quando sentem-se em perigo, ameaçados diante das enfermidades que historicamente levamos a eles, para as quais os remédios do mato (iwi polo) não fazem efeito, nem as práticas xamânicas, aspirações e sucções de doenças; nem mesmo o tatxik – poderoso cipó amargo que, sob a forma de bebida, potencializa os homens à caçada e as práticas curativas – poderia enfrentar uma doença trazida e até então desconhecida pelos não-indígenas (nawa). Frisei ainda que, por não conhecermos o novo coronavírus (nawavo unanemen), não tínhamos remédios, nem vacina (txiete vama, toskai vama) e que, portanto, o ideal para protegê-los era permanecerem nas suas aldeias. O informe sobre o novo coronavírus precedeu a discussão a respeito dos jovens indígenas que, para estudar, residem na cidade de Atalaia do Norte, Amazonas. Posteriormente, ainda no mesmo dia, o coordenador do Distrito Especial Sanitário Indígena (DSEI) Vale do Javari, Jorge Marubo, fez outro informe: já havia 77 casos de Covid-19 no Brasil, e o planejamento inicial do DSEI Vale do Javari seria imunizar as populações das aldeias contra doenças respiratórias, com as vacinas Pneumo 10, Pneumo 23 e H1N1. Iniciariam as buscas por um local de isolamento para possíveis casos em Atalaia do Norte – naquela ocasião ainda não havia casos ali –, e alertou ainda sobre os limites da Terra Indígena Vale do Javari, regiões onde não há controle. A TI Vale do Javari, com seus 8,5 milhões de hectares, além dos sete povos contatados que compartilham esse território, abriga também uma das maiores concentrações de povos isolados do mundo.
No dia 14 de março de 2020, encerramos a assembleia, e os seis povos que participaram – Kanamari, Korubo, Kulina-Pano, Marubo, Matis e Matsés – seguiram para suas aldeias. Malevo Korubo e Takvan Vakwë Korubo perguntaram-me ainda se eu voltaria para a comunidade com eles. Infelizmente não, mas ainda não era por causa do novo coronavírus. Os Korubo recém-contatados – existem ainda subgrupos Korubo isolados na TI Vale do Javari – são hoje 91 pessoas distribuídas em quatro aldeias no rio Ituí, e eu estava trabalhando na segunda delas: Sentele Maë, também conhecida como Roça Velha (Maë Xëni). Mas ao longo de fevereiro de 2020, na Sentele Maë, acometeram-me dores, sensações de desmaio, calafrios, febre e mal-estar frequentes. Aconselhada pelos profissionais da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) que dão assistência aos Korubo do rio Ituí, decidi, no início do mês de março, sair da aldeia para realização de exames em Tabatinga, Amazonas. Fui então diagnosticada com anemia ferropriva – este já era por si só um indício de que eu precisaria de uma pausa mínima nas atividades de campo para tratamento, meu corpo alertara –, mas havíamos sido convidados para a assembleia, comprometera-me a acompanhá-los, e queria muito participar de tal ocasião. Então fui, mesmo debilitada. Naquele momento não refletia ainda sobre a invasão do novo coronavírus no Brasil, no Estado do Amazonas, e sobre a paralisação da vida de todos, reconfiguração total, deixando rastros que nem sabemos se desaparecerão. Somou-se ao diagnóstico de anemia ferropriva a Portaria nº419 da FUNAI, que estabeleceu: Art. 3º. O contato entre agentes da FUNAI, bem com a entrada de civis em terras indígenas devem ser restritas ao essencial de modo a prevenir a expansão da epidemia. [...] §2º. As autorizações já concedidas devem ser reavaliadas pelas CR’s à luz da prevenção da epidemia da COVID-19, podendo ser reagendadas, especialmente quando envolverem a realização de eventos ou impliquem a entrada de mais de 05 pessoas na terra indígena. [...] Após a assembleia, retornei para minha casa em Tabatinga, e a tríplice fronteira – Brasil, Colômbia e Peru – já não era mais a mesma: escassearam álcool em gel, máscaras e pessoas na Avenida da Amizade. Um clima de tensão tomara o lugar e prenunciava que dias difíceis viriam, a fronteira se tornaria um caos, uma cápsula hermética. Hoje, maio de 2020, encontro-me em São Luís do Maranhão, local onde nasci e me criei, fazendo tudo o que está sob o meu alcance e controle nesse isolamento para recuperar minha saúde física e, na medida do possível, cuidando da saúde mental. Meu corpo está aqui, mas frequentemente flagro minha mente na fronteira. Penso diariamente nesses meus amigos Korubo que ficaram lá no mato, nas mulheres que me criavam como filha, ensinando-me tantas lições de vida sobre força, coragem e poder, e nas crianças que me presenteavam com frutas, ensinando-me sobre afeto, cuidado e amizade. Penso no quão vulneráveis os Korubo estão diante da pandemia do novo coronavírus. Por um lado, enquanto recém-contatados, possuem um sistema imunológico que em muito assemelha-se ao dos povos isolados, extremamente vulnerável às doenças de nawa. Por outro lado, mantêm atualmente relações constantes com os não-indígenas da FUNAI e SESAI – profissionais que cuidadosamente devem cumprir quarentenas, observar detalhes, sob pena de tornarem-se vetores de transmissão do vírus, pois o mínimo deslize pode levar ao extermínio dos Korubo. Penso nos sofrimentos que já tiveram, nas lutas que já travaram no passado, quantos morreram no mato! Perderam praticamente todos os seus anciãos, fugindo de bala, morrendo de gripe e de malária. E agora, quando finalmente sua população voltara a crescer, “nova” ameaça. Para os povos indígenas, essa ameaça tem resquícios de antiguidade. Penso também se e quando voltarei a vê-los. Juliana Oliveira Silva é doutoranda do PPGAS-Museu Nacional/UFRJ. Pesquisa gênero e parentesco entre os Korubo recém-contatados da Terra Indígena Vale do Javari, com ênfase nas práticas de construção e aperfeiçoamento dos corpos, e na criação de crianças. Localidade atual: São Luís, Maranhão. E-mail: [email protected] Os comentários estão fechados.
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AutoresAna Cláudia Teixeira de Lima, PPGHCS/COC/Fiocruz Arquivos
Novembro 2020
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