Acordo e, virado para o teto, agradeço por estar vivo. Dou três respirações profundas, tentando adiar o momento inevitável em que percebo que, mais uma vez, tudo se repete. Inalo – mais um dia; exalo – de novo tudo isso? De novo: inalo – de novo o feijão para temperar; exalo – se cozinho para a família, eu não estudo. Como que no meio de uma quarentena aumenta a preocupação com o totalmente inessencial? Pela terceira vez: inalo – não quero mais isso; exalo – não escolhi isso, mas estou aqui e pronto. Olho para minhas mãos. Olho para meus pés enquanto me alongo, esticando a coluna dura e fria, sentindo meu peso no chão, o equilíbrio corporal se estabilizando. Tento me manter sólido. Estou vivo e digo a Deus: fui salvo das garras da morte. Não morri. Sei por saber, mas do outro lado da linha intransponível entre o nosso mundo e o dos mortos, há dias e noites? Daquele lado, eles também não acordam? Por acaso se assombram de não ter sido salvos das garras da morte?
Há muita gente morrendo no Brasil hoje. Segundo os dados oficiais (que expressão estranha, ter que oficializar um dado), mais ou menos 70 mil almas. Considerando que a cada 24 horas são mais ou menos mil que se vão para o além, e que é possível que haja um pequeno período de espera entre os dois mundos, a conclusão lógica é que o ar deve estar saturado de almas. O barômetro do éter deve estar estourando o mercúrio. Temos medo de inalar o vírus, mas – e isso me veio nas últimas noites sonâmbulas – e se estivermos inalando os mortos do vírus? A desgraça está se aproximando em dois vetores. A escala numérica aumenta verticalmente enquanto horizontalmente se expande a presença do vírus pelo país. São linhas que se curvam como se estivessem ascendendo ao paraíso, enquanto o vírus se alastra pelo médio e pequeno Brasil. Incrédulos, o vírus nos lembrou que vivemos em algo chamado sociedade, e presos dentro de casa, fomos aproximados à força daquela abstração O Inferno Chamado Brasil. O inferno são os outros, disse Sartre, mas ele não disse o quão rápido o inferno começava a apertar seu cerco. Que tinha eu em comum com o Primeiro Morto, algum infeliz lá em São Paulo? Que compartilho com ele, a não ser a língua materna e, talvez, nossa paranoia étnica que nos faz temer que simultaneamente vivemos no inferno, no limbo e no paraíso? Talvez o fardo de estarmos juntos aqui, e não, sei lá, na Suécia, e ter que lidar com esse mesmo fardo. Pode ser que o maior feito das guerras culturais brasileiras tenha sido revelar que talvez a única experiência comum a todos os brasileiros (aqueles que ainda têm alguma decência) seja não querer estar aqui e agora. De qualquer modo, ame-se o Brasil ou não, com o passar das semanas as mortes da pandemia foram alastrando-se pelo interior físico e social, destruindo qualquer parâmetro ou escala que tínhamos antes. Falam que o Brasil não é para iniciantes, mas nem os mais experientes esperavam pelo ataque psíquico que sofreríamos nos primeiros meses de 2020. Como tudo no Brasil desde a colonização, a tragédia foi se espalhando à medida que o vírus ia fazendo suas próprias bandeiras. Tropeiro fiel às tradições sagradas dos nossos antepassados bastardos, demandou seu quinhão de almas, seja por bem ou por mal. Junto com a expansão geográfica, a expansão numérica de infectados e mortos, o encontro de duas escalas contíguas mas de diferentes níveis de abstração, digamos assim. Se vermos o problema com olhar bíblico (não que este esteja em falta no Brasil de hoje) estamos diante de duas entidades: de um lado, o Cavaleiro da Peste, arrasador de mundos e destruidor galopante; do outro, o grande rol que determina quem é salvo e quem é (ou já foi) condenado – um acerto de contas com a morte e um aviso para os que restaram. O complicado é que o vírus, sendo invisível, só pode ser percebido pelos seus efeitos no nível abstrato das coisas. A terrível Linha da Bolsa de São Paulo despenca, e os oráculos do templo de Guedes vão às câmeras demandar mais sacrifícios humanos. Ah, e a linha que contabiliza os mortos sobe. Tem isso também. O vírus, mísero pacote genético que desnudou os reis e humilhou os sábios, assemelha-se àqueles personagens de desenho que tomam uma poção de invisibilidade e que, depois de pintar o sete, só são descobertos quando se percebia o traço de pegadas na lama, despensas inteiras devoradas e estranhos buracos na parede. Como todas as evidências sugerem, o vírus não é negro e nem indígena, e nem pode ser fuzilado, então rapidamente Bolsonaro e a sua turma da demolição perderam interesse nele. Agora, imagine se fosse! Qual seria a estratégia de combate a iniciar a reação enérgica do governo? Instalariam uma UPP em cada pulmão brasileiro? Dez caveirões para subir e descer as veias e artérias de cada cidadão? Haveria algum policial de tamanho celular a mirar na cabecinha do vírus e apertar o gatilho? Ou, talvez, Marcos Pontes poderia desenvolver nano-garimpeiros para invadir nossos frágeis corpos de carne e osso! Por motivos que de vez em quando me escapam, desde meados de maio mantenho atualizado o que eu chamo o “placar da morte” na varanda do apartamento dos meus pais em Brasília. Inspirando terror e assombro nos pedestres mortais que passeiam com seus cachorrinhos ou vão ao supermercado pelo que se chama de rua aqui, sua confecção simples oculta sua macabra função. É uma gambiarra simples, que demanda apenas tinta guache preta, folhas de jornais velhos e fita crepe. Daria para fazer na sua casa, dado que seja visível da rua. Ao total são onze folhas de jornal recortadas e 44 pedaços de fita crepe (quatro para cada folha). Na linha superior, coloquei o número atualizado dos mortos por covid-19 (cinco folhas, até batermos 100 mil mortos, o que virá em breve). Na inferior, debaixo dos números, escrevi em letras garrafais a palavra MORTOS. Por sorte, estamos no segundo andar, garantindo que meu letreiro seja facilmente visto da rua. Todo dia, de manhã, vou à varanda e atualizo a primeira faixa. Esta deve sempre mudar, porque o número só aumenta. E de forma impiedosa e inexorável, pois os mortos não renascem e, em situações ideais (não estamos numa dessas, mas essa é outra história), não desaparecem. Eles só ganham mais companhia. A não ser que as leis fundamentais do universo não tenham sofrido as mesmas distorções que os dados do governo federal sobre a pandemia, meu placar claramente indica que o mundo dos mortos hoje deve estar ainda mais sobrecarregado do que as UTIs dos vivos. Mas suponho que a terra das almas seja muito, muito grande e eles não tenham esse tipo de problema por lá. Já a faixa de baixo, é claro, não muda. Os mortos continuam mortos e é preciso dizer que estão mortos. Inicialmente, eu só ia deixar os números lá na primeira faixa, sem qualificá-los. Mas pensei que um número avulso poderia ser confuso para quem estivesse na rua. Imaginava um transeunte passando e se perguntando, 23 mil o quê? Não queria testar as pessoas e nem provocá-las. Não queria que ficassem adivinhando o óbvio. Com esse placar fúnebre, quero dizer algo como, “Bom dia, morreu tanta e tanta gente na noite de ontem. Eles não foram salvos das garras da morte e nem conseguiram escapar do peso da escuridão.” Para ser sincero, “placar da morte” é um nome algo enganoso, porque sugere que minhas manhãs sejam um negócio lúgubre, imbuídas da solenidade de recordar os mortos. Não são. Não que eu esteja bem, mas ainda não enlouqueci. Por outro lado, não sei muito bem como classificar esse mural. Tem algo de testemunha, claro. Também é uma denúncia, dado o genocídio fabricado pelo governo federal e consentido pelas elites nacionais. Finalmente, poderia até dizer que é um pedido de ajuda, uma esperança que da varanda eu possa ver outros letreiros sendo exibidos em outras varandas – mas isso nunca aconteceu. No fundo, acho que se trata de algo mais rotineiro. Como o escrivão Bartleby, minhas palavras são: I would prefer not to. Preferiria que não. Preferiria que não houvesse tanta gente morta. Preferiria que não estivéssemos onde estamos, seja lá qual for a profundidade real ou imaginada do nosso buraco. Preferiria que não fosse testemunha da morte, mas da vida. Preferiria que não. Em tempos de crise, o negativo tem mais valor que o positivo, seja na teoria quanto na práxis. Ou seja, eu poderia ter escrito nas folhas pregadas de jornal as palavras FORÇA, ou VAI PASSAR, ou ESPERANÇA, ou alguma outra mensagem açucarada que aludiria ao problema mas não o enunciaria – tipo o coronavírus do tamanho de um elefante branco. Logo no primeiro dia do letreiro, quando havia “apenas” 16 mil mortos pela doença, o síndico do prédio interfonou e, com aquele tom de quem não gosta mas também não quer comprar a briga, mencionou que algum vizinho tinha reclamado da mancha na visão paradisíaca da Ilha da Fantasia – alcunha antiga para Brasília. Lógico que reclamaram. Pois o ethos das elites brasileiras manda que o negativo ande de cima pra baixo, e não o contrário. Por exemplo, deve-se sumir com as favelas e com os seus habitantes, com a evidência da realidade brutal a apenas alguns quilômetros de distância. Mas é terminalmente proibido trazer à tona toda a morte que sustenta a tranquilidade sublime dos “inocentes do Leblon” (ou dos Jardins). Assim, o bolsonarismo, cuja força maior não está no seu avatar como gestão pública mas como culto religioso dissimulado, continua fiel ao seu berço de nascimento. E é por isso que os bares da Dias Ferreira continuam lotados e os iates seguem velejando, porque pobre morrer não é razão para a bela festa nacional acabar. Todos nós conhecemos o jogo discursivo desse credo: oscilar entre se fingir de coitado e perguntar porque “eles” “torcem contra o Brasil” e, num piscar de olhos, mandar jornalistas calar a porra da boca. Sendo uma ideologia própria aos charlatões, o bolsonarismo conjuga o otimismo melado de dona de casa (reservado ao cinismo de quem apoia mas não quer saber da porrada) com a tanatofilia que cabe à gestão diária da tragédia: segurar recursos a estados, negar os mortos, pedir que as pessoas se envenenem com cloroquina. É Augusto Cury com Ustra, salão de cabelo e revista Caras com palmatória e o caveirão subindo o morro. Minha mãe, preocupada com meu estado mental, diz que eu deveria parar com isso; diz que é aguentar um carma muito pesado. Já minha irmã me recomenda tomar banho de ervas mais frequentemente, porque querendo ou não agora o sopro da morte está mais perto de mim. Ela não está errada. Sabe-se bem que dizer o nome de algo é convidá-lo; e que escrevê-lo, de certa forma, é dar-lhe uma espectralidade real demais para os nossos gostos. Será um grande indício contra as loas da civilização à palavra escrita que os primeiros cuneiformes não se tratavam de épicos ou cânticos de amor, mas sim de dívidas em cabeças de gado e alqueires de trigo. O que antes era uma relação entre pares, um momento do movimento recíproco entre dádiva e contra-dádiva, agora era escrita e assim tornava-se mais longeva que o credor e o devedor. Como a morte, a palavra escrita não pode morrer. Nietzsche, com alguma razão, via a leitura como um substituto para a vida. Dizem que detestava quem conseguia ler um livro pela manhã. Daí a ambiguidade desse letreiro improvisado que vejo claramente aqui da minha cama. Não é uma relação propriamente tranquila que tenho com ele. Tem dias que não consigo encará-lo e decido manter as persianas fechadas. Há domingos que ele não recebe nenhuma alteração. Meu pai, voltando do supermercado da quadra (não há esquinas em Brasília), percebe minha inação e me pergunta se ainda não atualizei o letreiro. Cínico e abatido, respondo que não precisa se preocupar: cartaz ou não, as pessoas ainda continuarão morrendo. Mas meu cinismo entrega, como o negativo da sua afirmação, o objetivo real do letreiro. A morte, evidentemente, continua sua tarefa incólume. Sou eu que sou responsável, como tantos outros são, a dar-lhe nome e algarismo, a sacrificar-lhe folhas de jornal e pinceladas de tinta escolar guache preta. Existem dias em que duvido do propósito do letreiro macabro. Concebi-o como forma de combater o negacionismo do governo, de atacar as mentes tranquilas dos mandarins letrados de Brasília, de assolar o obstinado “tá-tudo-tranquilo-até-que-não-tá” que parece reger nossa vida moral e política. Nos primeiros dias, o fazia com o ardor dos justos, sabendo que havia inimigos aqui e ali que se opunham à mancha de realidade que invadia este cantinho da Ilha. O que eu imaginava virar briga de condomínio depois da ligação do síndico acabou em um e-mail escrito num misto de juridiquês com denúncia moral que, dada a falta de qualquer oposição dos outros moradores, deve ter conscientizado o síndico, ou pelo menos tê-lo dado um pouco de vergonha na cara. E aí os dias foram se passando. A seca invernal veio se instalando. Os números só aumentaram. Na quarentena, o placar informa minha noção da passagem do tempo, pois conto o passar das semanas pela dezena de mortos que acompanha mais ou menos uma dezena de dias. O que era estatística então passou a virar algo pessoal, não porque eu me tornei mais empático, mas porque sua testemunha foi se tornando habitual, parte da minha rotina matinal. É algo pessoal. O meu letreiro é apenas um diário que só a mim pertence, mas que escrevo com as letras do Brasil. É algo como meu arranjo da última melodia da nossa eterna tragédia nacional. Quando ficaram sabendo do meu novo hábito, fui parabenizado por amigos e colegas, que invariavelmente perguntavam o que era aquele cartaz acima da minha cabeça que podiam espiar em alguma vídeo-chamada. Corajoso, disseram. Mas não sofro por ele; não sou nenhum mártir pela verdade. Desses, o Brasil já tem de montão, e suponho que alguns deles estejam na sequência de algarismos que decora a parte interna da minha varanda. Como todos nós, também me acostumei com os números cada vez mais estrondosos, com subir a casa do milhar a cada manhã, dividindo minha caneca de café com a ciência de que na noite mais de mil almas tinham deixado nosso mundo. Antes de me deitar, vou à varanda para fumar um cigarro. Às vezes dou as costas para a rua e me viro para o letreiro, esse registro precário da hecatombe. Tento transformar sua contabilidade mortuária abstrata em algo concreto. Olho para a quantidade de mortos e digo, entre tragadas, lentamente, tentando saborear as palavras, tentando me agarrar à brutalidade que é tanta gente ir para o mundo dos mortos: “Estas almas não foram salvas das garras da morte. Elas não escaparam do peso da escuridão.” Não consigo entender. É incompreensível. Felipe Moretti pesquisa os movimentos de Caldeirão e Pau de Colher, que se deram na década de 30 no Sertão nordestino. Interessa-se sobre como seus discursos podem oferecer-nos outras visões sobre a relação entre o humano, o divino e as temporalidades associadas ao fim do mundo. Acredita que, olhando assim para este passado recente e que foi violentamente destruído pelo Estado Novo varguista, possamos encontrar respostas para as questões dos nossos tempos, também assombrados pela mudança climática global e o colapso de regimes geopolíticos estabelecidos. |
AutoresAna Cláudia Teixeira de Lima, PPGHCS/COC/Fiocruz Arquivos
Novembro 2020
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