Neste pequeno texto gostaria de expressar os sentimentos de piração que passei a sentir durante minha reclusão forçada no período da pandemia do coronavírus. Por viver há pouco tempo na cidade, achei que me isolar não traria problemas emocionais, mas morando num apartamento minúsculo, sem chão, já estava em estado de entrar em delírio, a qualquer momento. É desse delírio que gostaria falar, a partir do meu novo olhar, desde que vim morar na cidade. Pela experiência de viver na aldeia e na cidade, pude avistar o movimento das pessoas de diversas formas. É nesse sentido que irei pontuar algumas questões que acredito sejam relevantes para a minha reflexão, para meu modo particular. Mesmo desde antes, já vivendo no tetã re (cidade), vinha observando e sentindo essa sensação, como se eu estivesse numa jaula; morar na cidade é, literalmente, estar preso, encarcerado. Aí eu me pergunto: somos condenados por quê e por quem? As pessoas da cidade sempre viveram com essa sensação? Esse sentimento de encarceramento não é tratado como direito à saúde. Que ironia estar em meu quarto, depois do meu surto explodir. Já carregava comigo esse surto, mas tinha conseguido controlá-lo até a explosão da doença. Todos deveriam surtar por serem punidos, aprisionados, cercados numa jaula minúscula. Não sei se realmente estão se sentindo bem ou apenas fingindo que estão bem, para criar uma ilusão de que as cidades são felizes. Entendo que as pessoas que estão satisfeitas e acomodadas são aquelas que nunca tiveram oportunidade de observar paisagens de várias janelas, de várias esquinas. Talvez por isso, os que têm direito de movimentar seus corpos estão marcados por uma sensação de frieza: muitos djurua acham normal um morto ou um vivo estar exposto na rua. Achar normal que as pessoas morem nas ruas e não fazer nada é a mesma coisa que assistir a um espetáculo. Lembro de um acontecimento, pouco depois de minha chegada ao Rio de Janeiro, um dia quente, em pleno meio-dia. Havia grupos de professores se manifestando na frente da ALERJ. Naquele dia estava indo a um evento na Universidade Federal Fluminense, em Niterói, a convite de uma professora para dar uma palestra, e passei por lá porque é caminho para pegar a barca para Niterói. Nunca mais esqueci daquelas imagens terríveis, na saída do metrô. Não sabia o que estava acontecendo. Fui caminhando normalmente, senti meus olhos ardendo e vi muita fumaça. Continuei andando. Muitas pessoas corriam, outras eram carregadas desmaiadas na frente de policiais que disparavam spray de pimenta e balas de borracha como se fosse chuva de granizo. Imagens de guerra. Um senhor foi atingido. Lembrei da xe djaryi, minha avó, e fiquei muito emocionada. Comecei a chorar, no fundo, e a gritar (sapukai), que não é grito e sim um canto sagrado que eu sempre ouvia no meu sonho. Minha avó dizia que todas nós mulheres temos nossos cantos. O grito sapukai vem da garganta da mulher, dona da voz alta e fina, a voz nhakyrã da cigarra, que é da mulher. Toda mulher tem seu canto sagrado. Ele pode surgir a qualquer momento, na tristeza, na alegria, na raiva ou num momento de enfrentamento, como naquele dia. O que me deixou chocada foi que aqueles que estavam na luta, sendo atacados por policiais, passando mal, ficavam perto de outros tomando cerveja e que viam aquela situação como se não estivesse acontecendo nada. A maioria dos parentes indígenas que vieram estudar ou trabalhar nas cidades, principalmente nas cidades grandes como São Paulo ou Rio de Janeiro, fica também impactada com a presença e a quantidade de moradores de ruas, independente da idade ou gênero, sem ser vistos, ou seja, sem impactar outras pessoas. O choque que levam quando se deparam com essa realidade é muito assustador. Principalmente para aqueles que nunca estiveram nas cidades grandes. A questão não é morar nas ruas, e sim a forma como são abandonados pela própria sociedade das cidades. Fiquei muito tempo refletindo sobre essa frieza das pessoas da cidade, que normaliza os abandonos no meio de tantas casas. Vivem expostas a ventos, chuvas, calor etc. Não que isso seja ruim – esses elementos da natureza fazem partes das nossas vidas para viver – mas pessoas sem teto estão sem proteção, vulneráveis a quaisquer enfermidades no corpo. Em nossos costumes, frieza, mboraywu he’yn, já é uma doença. Isso me deixava chocada e muito pensativa. Tentava entender por quê. Onde esses seres humanos têm direito? Devem estar no papel, no gabinete de alguém que sabe das leis e dos direitos humanos. Não sei se as chamaria de pessoas com py’a, com sentimentos. As pessoas que realmente têm py’a podem delirar, pirar, chorar, cantar, gritar. É normal para nós, mas tudo é falado na reunião ou na casa de reza. Por isso que nós Guarani sempre estamos em nhomongueta, encontro de conversa, para que não se chegue a explodir. Hoje eu entendo o que é doença para muitos djurua. Mba’e hasy, mba’asy, coisa que dói ou doença, aparece no corpo quando já está no último estágio. Falo por metáforas para libertar minha angústia. Depois que os corpos já estão penalizados, castigados, esquartejados e amputados do espírito, é difícil ressuscitarem ou criarem armaduras para que não desmontem facilmente. O corpo desmontado dificilmente saberá se reerguer. Não estou dizendo que somos melhores, mas os djurua kuery sempre acham que se resolve uma doença cuidando dos doentes ou com vacinas. De que adianta curar uma parte do corpo amputada e deixar outras partes sem cuidado? Os vírus sempre irão contaminar as partes sem vacina. Não consigo entender a lógica dos djurua kuery quando tratam da doença sem entender que o caminho do bem-estar no mundo inclui humanos e não humanos em volta. Quando tentam cuidar dos corpos, só enxergam os que já estão contaminados. Por isso, enquanto pesquisam para descobrir a cura de uma doença que está no corpo, ela já infectou o corpo inteiro e chega a hora de morrer. Muitos morrem até descobrir a vacina exata para aquela doença. Viver confinados sem poder nhemongu’e, se movimentar, sem ter condições de sonhar. A expetativa de vida é uma doença coletiva daqueles que são sufocados pela “pandemia” do desequilíbrio da humanidade. As cidades não seguem os sistemas e não pensam como Guarani, portanto tive que me movimentar de acordo com os movimentos de onde estou vivendo. Não há como pensar como Guarani ou não ser capturado por essa frieza do contexto do lugar onde estou inserida. Mas esse nem sempre é meu jeito de ser, e sim marca que carrego – tive que carregar – do lugar. Essa minha tristeza, que às vezes se transforma em fúria, vem da minha angústia, de não ter para onde olhar para ver coisas diferentes, de não poder ficar sentada no chão, ouvindo a voz dos meus parentes cantando, rindo ou falando em guarani, para meu py’a ficar mais calmo. O sofrimento físico, a dor do corpo que vem do castigo da opressão, pode se tornar uma fúria ou tristeza, passa das sensações como se fosse respiração tóxica, insuportável, como se fôssemos espiritos criminosos, responsáveis pela nossa morte. Antes de vir morar aqui, não tinha percebido que as cidades, se não tivermos cuidado, podem dar a ilusão de que oferecem mais possibilidades de estudar ou trabalhar, como muitos jovens indígenas já ouviram falar. No nosso costume guarani, temos o entendimento de que existe cerca, e não pessoa cercada. Chamamos “cerca” de kora ou kora’i. Ela não é utilizada para encarcerar pessoas, e sim paras as crianças que estão aprendendo a dar passos. Kora’i ou amba’i significa ‘cerca redonda’, mas pode ser quadrada ou de um lado apenas, geralmente feita pelos pais para ensinar os bebês a se apoiar e se segurar para não cair. Estas cercas ficam nas casas, onde as crianças brincam, até que estejam seguras para andar. Depois que o bebê – kyrĩ ou mita’ĩ – aprende a andar, os pais retiram todas as cercas, para que a criança tenha autonomia de andar e explorar os espaços onde está sendo inserida, portanto, onde começa sua relação com o espirito da natureza em cada etapa de sua vida guarani. Kora é coisa que pode ser redonda, como por exemplo ipara kora, que quer dizer ‘coisas que são redondas’. Estão relacionadas com a origem do nome ou espírito da pessoa guarani. Mas esse não é meu foco. O que estou querendo explicar é que nós não aprendemos a viver na cerca fechada. Entendemos que existem cercas para nos apoiar e nos ensinar a andar firme, e não para confinar e encarcerar nossos passos. Não é uma cerca que aprisiona, um lugar fechado que priva a circulação do corpo. Já é delirante ficar literalmente numa casa com quatro janelas e sem chão. Minha agonia, meu surto psicótico, que havia me capturado talvez desde a infância, durante minha escolarização... Podia controlá-lo com a sensação de autonomia, de estar vivenciando outras atividades, como encontrar meus amigos e professores, ou participar de eventos, congressos, que me davam suporte para continuar respirando, mesmo vivendo sufocada. Sufoco: a agonia que sentia, mesmo vivendo no meio da sociedade, que aparentemente tem muitas pessoas. Estando em uma sociedade em que vivemos encarcerados, é claro que iria entrar em desespero e ficar em estado de choque, de alucinação. Talvez seja comum, mas nunca pensei que ficaria desapontada em meu quarto, olhando para a mesma coisa e vendo o mesmo ângulo. Como não enjoar olhando as mesmas coisas, olhar do mesmo lugar, como uma roleta? Sentia-me sozinha. Texto original editado, com autorização da autora, por Thiago Sá. Sandra Benites [[email protected]], da etnia guarani nhandewa, é doutoranda do PPGAS/MN/UFRJ. Seu atual projeto de pesquisa trata da vidas das mulheres guarani e tem como título: “Mulher falando: fundamentação do teko tekohaa partir da visão das nhandesy kuera do Mato Grosso do Sul, mostrando várias facetas kunhangue reko”. Texto enviado no dia 7 de junho.
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AutoresAna Cláudia Teixeira de Lima, PPGHCS/COC/Fiocruz Arquivos
Novembro 2020
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