“Sobre o terreno mole o pé de um bicho não escorrega” - [José Roberto S. Saiol, PPGHCS/COC/Fiocruz]15/5/2020
Acabei de ver na Mídia Ninja: “troco uma máscara por um alimento”. Meu coração parou. Hoje é dia das mães. Ontem, meu avô teria completado 90 anos. Essa noite eu sonhei com ele e com a minha avó. Quando me dei conta de que estava sonhando, lembrei que aquele cotidiano – um domingo de churrasco e casa cheia, de fazer o prato da minha avó e tentar convencê-la a comer mais algumas colheradas em troca de um doce – já não podia mais existir. Que saudade deles! Se foram e ficou um buraco no meu coração. Estava lendo textos do século XIX para a pesquisa: Comte, Saint-Simon, Torres Homem... Esses textos foram fundamentais na promoção do valor social das ciências e na constituição do seu estatuto de legitimidade; elas eram, de uma só vez, o meio mais eficaz para o melhoramento da sociedade e para a construção de um futuro de progresso e felicidade. É tão estranho [é esse mesmo o adjetivo?] ver esse edifício que eles ajudaram a erguer ruir dessa maneira tão dramática – junto, é claro, de todos os marcos civilizatórios que conquistamos desde aquela época – sem saber muito bem como se luta contra isso num mundo dominado pelos perversos. Como disse a Eliane Brum, os nossos dias precisam voltar a nos pertencer. O Fourier é um cara muito doido, né?! A insustentável leveza do ser é um romance; mas bem que podia ser um livro de filosofia. Entre as muitas lições que existem nele, está um convite à apreciação dos acasos. Kundera ensina: “Não há, portanto, razão nenhuma para censurar aos romances o seu fascínio pelos misteriosos cruzamentos dos acasos, mas há boas razões para censurar o homem por ser cego a esses acasos na sua vida cotidiana e assim privar a vida da sua dimensão de beleza”. O acaso que tornou possível a convergência das nossas escolhas; o acaso que, de modo indulgente, te mostrou que existe mais em mim do que minha antipatia e minha personalidade difícil; o acaso que nos levou a redigir de mãos dadas aquele que foi o nosso parto mais longo e dolorido até o momento; o acaso que deu ensejo ao nosso reencontro; o acaso de dividir carinhos e um [quase] cochilo numa árvore do MAM iluminada pelo poste da Lota (aquele, do Aterro, que simula o luar) enquanto a gente esperava a vez do dj chato da festa passar. Afeto. Minha saudade de todos os dias. Está no livro: “mesmo nos momentos da mais profunda desordem, é segundo as leis da beleza que, secretamente, o homem vai compondo a sua vida.” Não aguento mais o Bolsonaro. Estava prestes a completar dois meses sem dar um único abraço quando a Anny apareceu. Hoje é dia de live da Duda Beat e de texto novo da Laura. Também sonhei com ela; voltávamos ao nosso restaurante secreto no Largo do Machado. Que sorte foi ter vindo pra casa a tempo! Se tivesse ficado sozinho no Rio, já teria enlouquecido. A minha passagem favorita do conto d’Os Sobreviventes diz o seguinte: “[...] não tem jeito, companheiro, nos perdemos no meio da estrada e nunca tivemos mapa algum, ninguém dá mais carona e a noite já vem chegando.” Por causa dele, eu descobri a Angela Ro Ro. Cada um dos que se foram era o amor de alguém. Ontem eu estava ouvindo de novo o registro da gravação de “The end of a love affair” pela Billie Holiday. A música é uma coisa tão especial! Preciso qualificar e o prazo pro texto da SBHC já está estourando. Vô, vó, que saudade. Quando vocês desapareceram no sonho, caí nos pés da cama – bem ali onde eu me aconchegava entre vocês quando era criança – e chorei de soluçar. Quando terminei de chorar, acordei. Outra lição do Kundera: “O amor não se manifesta através do desejo de fazer amor, mas através do desejo de partilhar o sono.” Tem feito dias tão bonitos por aqui. As nuvens no céu se parecem com pinturas de tinta óleo. Acordei tarde de novo; está muito frio! Estou atrasado para descer e espremer as laranjas do suco do almoço; fica todo mundo esperando. O que eu gosto na poesia da Matilde Campilho é que cada texto é o percurso de descoberta de uma teoria filosófica complexa sobre qualquer coisa. Pessoalmente, prefiro as que falam sobre o amor: “O mestre ainda não veio decretar o começo da abstenção e, olha, a luz ainda está conosco.” Enquanto não houver vacina, não poderei voltar ao meu karaokê favorito em São Cristóvão. Meu sol está escrevendo um texto novo. Conversamos longamente no telefone sobre ele e rimos como sempre acontece quando estamos juntos. Quando será que nos encontraremos de novo? Estamos com saudades. É tudo tão cruel. Eu não posso usar prestobarba, tenho foliculite. Se eu soubesse que as viagens seriam suspensas, teria trazido o aparelho de barbear do Rio. O que eu nunca vou perdoar nesse vírus é que ele me tirou dos braços onde eu me acostumei a estar; os mesmos pra onde sempre quero voltar. De novo a Matilde Campilho? “Porque, toda a gente sabe, sobre o terreno mole o pé de um bicho não escorrega. Isso é o fim do medo. Hoje é dia de São Mateus, e Santo Agostinho repete insistentemente o velho mantra: ‘Prefiro a misericórdia/ Prefiro a misericórdia/ Prefiro a misericórdia.” Estou cansado... Três Rios, 12 de maio de 2020 Sobre o autor: sou aluno de doutorado em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz, e estudo as relações entre ciência e utopia durante o século XIX. Nesse texto, lancei mão direta ou indiretamente de algumas das minhas referências literárias favoritas: Milan Kundera, Caio Fernando Abreu, Matilde Campilho, Laura Nery. Cada um deles tem me feito companhia nesse período de isolamento social e me ajudam a dar sentido e a elaborar esse momento tão difícil para a nossa geração; não sei o que seria de mim sem eles. Agradeço à Renata Nassur, que gentilmente autorizou a publicação do registro fotográfico que fiz de uma de suas obras, e que ajuda a compor este texto. E-mail: [email protected].
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AutoresAna Cláudia Teixeira de Lima, PPGHCS/COC/Fiocruz Arquivos
Novembro 2020
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