Neste pequeno texto gostaria de expressar os sentimentos de piração que passei a sentir durante minha reclusão forçada no período da pandemia do coronavírus. Por viver há pouco tempo na cidade, achei que me isolar não traria problemas emocionais, mas morando num apartamento minúsculo, sem chão, já estava em estado de entrar em delírio, a qualquer momento. É desse delírio que gostaria falar, a partir do meu novo olhar, desde que vim morar na cidade. Pela experiência de viver na aldeia e na cidade, pude avistar o movimento das pessoas de diversas formas. É nesse sentido que irei pontuar algumas questões que acredito sejam relevantes para a minha reflexão, para meu modo particular. Mesmo desde antes, já vivendo no tetã re (cidade), vinha observando e sentindo essa sensação, como se eu estivesse numa jaula; morar na cidade é, literalmente, estar preso, encarcerado. Aí eu me pergunto: somos condenados por quê e por quem? As pessoas da cidade sempre viveram com essa sensação? Esse sentimento de encarceramento não é tratado como direito à saúde. Que ironia estar em meu quarto, depois do meu surto explodir. Já carregava comigo esse surto, mas tinha conseguido controlá-lo até a explosão da doença. Todos deveriam surtar por serem punidos, aprisionados, cercados numa jaula minúscula. Não sei se realmente estão se sentindo bem ou apenas fingindo que estão bem, para criar uma ilusão de que as cidades são felizes. Entendo que as pessoas que estão satisfeitas e acomodadas são aquelas que nunca tiveram oportunidade de observar paisagens de várias janelas, de várias esquinas. Talvez por isso, os que têm direito de movimentar seus corpos estão marcados por uma sensação de frieza: muitos djurua acham normal um morto ou um vivo estar exposto na rua. Achar normal que as pessoas morem nas ruas e não fazer nada é a mesma coisa que assistir a um espetáculo. Lembro de um acontecimento, pouco depois de minha chegada ao Rio de Janeiro, um dia quente, em pleno meio-dia. Havia grupos de professores se manifestando na frente da ALERJ. Naquele dia estava indo a um evento na Universidade Federal Fluminense, em Niterói, a convite de uma professora para dar uma palestra, e passei por lá porque é caminho para pegar a barca para Niterói. Nunca mais esqueci daquelas imagens terríveis, na saída do metrô. Não sabia o que estava acontecendo. Fui caminhando normalmente, senti meus olhos ardendo e vi muita fumaça. Continuei andando. Muitas pessoas corriam, outras eram carregadas desmaiadas na frente de policiais que disparavam spray de pimenta e balas de borracha como se fosse chuva de granizo. Imagens de guerra. Um senhor foi atingido. Lembrei da xe djaryi, minha avó, e fiquei muito emocionada. Comecei a chorar, no fundo, e a gritar (sapukai), que não é grito e sim um canto sagrado que eu sempre ouvia no meu sonho. Minha avó dizia que todas nós mulheres temos nossos cantos. O grito sapukai vem da garganta da mulher, dona da voz alta e fina, a voz nhakyrã da cigarra, que é da mulher. Toda mulher tem seu canto sagrado. Ele pode surgir a qualquer momento, na tristeza, na alegria, na raiva ou num momento de enfrentamento, como naquele dia. O que me deixou chocada foi que aqueles que estavam na luta, sendo atacados por policiais, passando mal, ficavam perto de outros tomando cerveja e que viam aquela situação como se não estivesse acontecendo nada. A maioria dos parentes indígenas que vieram estudar ou trabalhar nas cidades, principalmente nas cidades grandes como São Paulo ou Rio de Janeiro, fica também impactada com a presença e a quantidade de moradores de ruas, independente da idade ou gênero, sem ser vistos, ou seja, sem impactar outras pessoas. O choque que levam quando se deparam com essa realidade é muito assustador. Principalmente para aqueles que nunca estiveram nas cidades grandes. A questão não é morar nas ruas, e sim a forma como são abandonados pela própria sociedade das cidades. Fiquei muito tempo refletindo sobre essa frieza das pessoas da cidade, que normaliza os abandonos no meio de tantas casas. Vivem expostas a ventos, chuvas, calor etc. Não que isso seja ruim – esses elementos da natureza fazem partes das nossas vidas para viver – mas pessoas sem teto estão sem proteção, vulneráveis a quaisquer enfermidades no corpo. Em nossos costumes, frieza, mboraywu he’yn, já é uma doença. Isso me deixava chocada e muito pensativa. Tentava entender por quê. Onde esses seres humanos têm direito? Devem estar no papel, no gabinete de alguém que sabe das leis e dos direitos humanos. Não sei se as chamaria de pessoas com py’a, com sentimentos. As pessoas que realmente têm py’a podem delirar, pirar, chorar, cantar, gritar. É normal para nós, mas tudo é falado na reunião ou na casa de reza. Por isso que nós Guarani sempre estamos em nhomongueta, encontro de conversa, para que não se chegue a explodir. Hoje eu entendo o que é doença para muitos djurua. Mba’e hasy, mba’asy, coisa que dói ou doença, aparece no corpo quando já está no último estágio. Falo por metáforas para libertar minha angústia. Depois que os corpos já estão penalizados, castigados, esquartejados e amputados do espírito, é difícil ressuscitarem ou criarem armaduras para que não desmontem facilmente. O corpo desmontado dificilmente saberá se reerguer. Não estou dizendo que somos melhores, mas os djurua kuery sempre acham que se resolve uma doença cuidando dos doentes ou com vacinas. De que adianta curar uma parte do corpo amputada e deixar outras partes sem cuidado? Os vírus sempre irão contaminar as partes sem vacina. Não consigo entender a lógica dos djurua kuery quando tratam da doença sem entender que o caminho do bem-estar no mundo inclui humanos e não humanos em volta. Quando tentam cuidar dos corpos, só enxergam os que já estão contaminados. Por isso, enquanto pesquisam para descobrir a cura de uma doença que está no corpo, ela já infectou o corpo inteiro e chega a hora de morrer. Muitos morrem até descobrir a vacina exata para aquela doença. Viver confinados sem poder nhemongu’e, se movimentar, sem ter condições de sonhar. A expetativa de vida é uma doença coletiva daqueles que são sufocados pela “pandemia” do desequilíbrio da humanidade. As cidades não seguem os sistemas e não pensam como Guarani, portanto tive que me movimentar de acordo com os movimentos de onde estou vivendo. Não há como pensar como Guarani ou não ser capturado por essa frieza do contexto do lugar onde estou inserida. Mas esse nem sempre é meu jeito de ser, e sim marca que carrego – tive que carregar – do lugar. Essa minha tristeza, que às vezes se transforma em fúria, vem da minha angústia, de não ter para onde olhar para ver coisas diferentes, de não poder ficar sentada no chão, ouvindo a voz dos meus parentes cantando, rindo ou falando em guarani, para meu py’a ficar mais calmo. O sofrimento físico, a dor do corpo que vem do castigo da opressão, pode se tornar uma fúria ou tristeza, passa das sensações como se fosse respiração tóxica, insuportável, como se fôssemos espiritos criminosos, responsáveis pela nossa morte. Antes de vir morar aqui, não tinha percebido que as cidades, se não tivermos cuidado, podem dar a ilusão de que oferecem mais possibilidades de estudar ou trabalhar, como muitos jovens indígenas já ouviram falar. No nosso costume guarani, temos o entendimento de que existe cerca, e não pessoa cercada. Chamamos “cerca” de kora ou kora’i. Ela não é utilizada para encarcerar pessoas, e sim paras as crianças que estão aprendendo a dar passos. Kora’i ou amba’i significa ‘cerca redonda’, mas pode ser quadrada ou de um lado apenas, geralmente feita pelos pais para ensinar os bebês a se apoiar e se segurar para não cair. Estas cercas ficam nas casas, onde as crianças brincam, até que estejam seguras para andar. Depois que o bebê – kyrĩ ou mita’ĩ – aprende a andar, os pais retiram todas as cercas, para que a criança tenha autonomia de andar e explorar os espaços onde está sendo inserida, portanto, onde começa sua relação com o espirito da natureza em cada etapa de sua vida guarani. Kora é coisa que pode ser redonda, como por exemplo ipara kora, que quer dizer ‘coisas que são redondas’. Estão relacionadas com a origem do nome ou espírito da pessoa guarani. Mas esse não é meu foco. O que estou querendo explicar é que nós não aprendemos a viver na cerca fechada. Entendemos que existem cercas para nos apoiar e nos ensinar a andar firme, e não para confinar e encarcerar nossos passos. Não é uma cerca que aprisiona, um lugar fechado que priva a circulação do corpo. Já é delirante ficar literalmente numa casa com quatro janelas e sem chão. Minha agonia, meu surto psicótico, que havia me capturado talvez desde a infância, durante minha escolarização... Podia controlá-lo com a sensação de autonomia, de estar vivenciando outras atividades, como encontrar meus amigos e professores, ou participar de eventos, congressos, que me davam suporte para continuar respirando, mesmo vivendo sufocada. Sufoco: a agonia que sentia, mesmo vivendo no meio da sociedade, que aparentemente tem muitas pessoas. Estando em uma sociedade em que vivemos encarcerados, é claro que iria entrar em desespero e ficar em estado de choque, de alucinação. Talvez seja comum, mas nunca pensei que ficaria desapontada em meu quarto, olhando para a mesma coisa e vendo o mesmo ângulo. Como não enjoar olhando as mesmas coisas, olhar do mesmo lugar, como uma roleta? Sentia-me sozinha. Texto original editado, com autorização da autora, por Thiago Sá. Sandra Benites [[email protected]], da etnia guarani nhandewa, é doutoranda do PPGAS/MN/UFRJ. Seu atual projeto de pesquisa trata da vidas das mulheres guarani e tem como título: “Mulher falando: fundamentação do teko tekohaa partir da visão das nhandesy kuera do Mato Grosso do Sul, mostrando várias facetas kunhangue reko”. Texto enviado no dia 7 de junho.
O primeiro semestre do doutorado coincidiu com a pandemia de COVID-19.
Não faz muito tempo, no pouco longínquo 2017, à época mestranda, cursei a disciplina História das Doenças. Entre tantas experiências da doença, estudamos também duas pandêmicas: gripe espanhola e AIDS. Ambas ocorridas, com intervalo de cerca de seis décadas, no século XX. A experiência da AIDS, mais especificamente a de combate ao HIV/AIDS, é o meu objeto de pesquisa desde o mestrado. Por isso, eu tinha certa afinidade com os debates elencados sobre ela. No entanto, foi a primeira vez que estudei mais profundamente a gripe espanhola e seus desdobramentos catastróficos expressados, principalmente, na alta mortalidade e na interrupção do cotidiano. O que quero destacar, de um ponto de vista particular, é como, para mim, era inimaginável uma interrupção dessa magnitude no nosso cotidiano. Como conjecturar o isolamento social e a impossibilidade de aglomerações e de encontros presenciais? Vivenciar uma pandemia é muito diferente de estudá-la; e este texto resulta justamente dessa vivência. Embora eu more no Rio de Janeiro, estou passando a quarentena com a Larissa, minha namorada, e a Broinha, nossa cachorrinha, em Mariana, Minas Gerais. Em meados de março, vim visitá-las e não consegui voltar ao Rio. De qualquer forma, se eu não estivesse aqui, viria correndo. Minha mãe faz parte do grupo de risco do Covid-19 e uma pessoa a menos em um apartamento pequeno faz muita diferença. Ela é empregada doméstica e por conta da pandemia está trabalhando dois dias por semana. Apesar da jornada reduzida, o que nos deu certa tranquilidade, o sentimento de culpa por poder ficar em casa enquanto ela precisa sair para trabalhar é inevitável. A isto se soma a tristeza pelos que perderam a vida em virtude do Covid, a aflição diária gerada pelo número de mortes e de novos casos da doença e o quadro político do Brasil perpassado pelas desigualdades sociais e étnicas. O convívio com a Lari e a Broinha tem me ajudado a atravessar esse momento. Sem as duas, as coisas certamente seriam muito mais difíceis. Na medida do possível, os dias em Mariana têm sido tranquilos. Evidentemente, adaptamos a nossa rotina a situação pandêmica. De máscara e sempre respeitando o distanciamento, consigo, atualmente, sair duas vezes por dia para dar uma voltinha de cerca de 650 metros com a Broinha. Nos fins de semana, as ruas ficam muito movimentadas, não saímos. Em casa, já testamos inúmeras receitas (aprendi a fazer pão) e assistimos a praticamente todos os filmes do Studio Ghibli (entre tantos, recomendo A Viagem de Chihiro e Memórias de Ontem). Parte do meu planejamento para o primeiro semestre do doutorado não se concretizou. Inicialmente, o objetivo era me concentrar na bibliografia e na pesquisa no acervo da Coleção ABIA. Com a impossibilidade de ir ao arquivo, tenho me dedicado as leituras. Como Larissa e eu estamos no doutorado, há uma ajuda mútua e um esforço conjunto em manter a rotina de estudos. Isto é muito importante para mim, sempre fui uma aluna que precisa de constância, do estudo diário (exceto nos dias de descanso). Tenho seguido um cronograma de leitura, mantido o ritmo e amadurecido algumas ideias para a pesquisa. Evidentemente, há dias em que não consigo render muito. Quando isso acontece, respeito os meus limites e tento não alimentar um sentimento de culpa por um dia academicamente não tão produtivo. A quarentena tem ensejado uma série de reflexões e a retomada de duas grandes paixões: a literatura e a música. Encarei Laranja Mecânica e sua linguagem própria, voltei a me sentir desafiada por Agatha Christie, fiquei inquieta com Fahrenheit 451. Ah, a música! Das artes, ela é o meu grande amor. Revisitei tanta gente que gosto e conheci uma galera muito legal. Meu violão e eu estamos muito próximos, não sou uma musicista, mas ele e eu nos entendemos. Confesso que sinto falta de uma guitarra, mas nada que tocar violão sob o céu de Minas em uma noite de lua cheia não resolva. Voltar a fazer aula de música e dedicar-me com afinco ao violão e a guitarra são resoluções pós-pandemia. A experiência da quarentena e da pandemia também reiterou algumas convicções. Fiquei feliz por não precisar passar por ela para entender como, para mim, é importante estar e confraternizar com as pessoas que amo, valorizar a natureza, fazer trilhas, praticar esportes coletivos, nadar, ir à praia, ao bar e a São Januário torcer pelo Vasco. Eu adoro The Cranberries. As músicas da banda têm sido grandes companheiras minhas na quarentena; ora ouvindo-as, ora tocando-as. De modo especial, tenho ficado presa à estrofe inicial de Dreams: “Oh, my life Is changing everyday In every possible way” “Oh, minha vida Está mudando todos os dias De todas as maneiras possíveis” Esse verso expressa bem o que tem sido, para mim, a experiência da quarentena. Ela não é monótona; ela é instável e inconstante; ela me assusta. Entretanto, estou tentando lidar com ela da melhor forma que posso e que consigo. Sobre a autora: Doutoranda em História (PPGHCS/COC/Fiocruz). No mestrado, pesquisei a organização do movimento LGBTI da cidade do Rio de Janeiro para combater o HIV/Aids. No doutorado, pesquiso os impactos de políticas conservadoras e da LGBTIfobia na resposta brasileira ao HIV/Aids entre os anos de 1996 e 2019. E-mail: [email protected] No Ceará, o isolamento social iniciou oficialmente no dia 20 de março de 2020. Dia 19 eu estava em Iguatu devido ao trabalho e, como era feriado de São José, já arrumei a mala em direção à Fortaleza com a intenção de passar os dias de isolamento em casa com minha mãe. Naquele momento, tinha na cabeça que seriam poucos dias. Cheguei a pensar: vou levar os livros e as roupas que precisarei durante um mês. Imaginei que no final de abril estaríamos todos de volta à rotina. Hoje é 01 de junho e marca o primeiro dia de transição para a retomada das atividades econômicas no estado. E eu ainda estou em isolamento, assim como muitas pessoas que conheço. A palavra que talvez melhor defina esse período é cuidado. Sim, cuidado. Cuidado com o que considero mais valioso: as pessoas que amo. Estou em casa e evito as saídas desnecessárias. As poucas idas à rua são feitas para compras no mercado ou na farmácia. O olhar para a rua se tornou restrito à moldura da janela. Nesse tempo, algumas perguntas estão sempre presentes na cabeça: “será que vou adoecer?”; “será que alguém que conheço e amo vai adoecer?”; “o que será a vida depois disso tudo?”; “terá uma vida depois disso?”. Não tenho as respostas e talvez, agora, ninguém as tenha. Tenho a impressão que tudo isso começou e a gente não percebeu que deu o último passeio na cidade, a última ida à praia, o último encontro com os amigos. Teria sido diferente se soubéssemos que era uma despedida temporária e que passaríamos mais de dois meses sem poder repetir? Quase sempre nas conversas com os amigos estamos sempre repetindo: “quando isso acabar, vamos tomar uma cerveja, vamos à praia, vamos ao cinema”. Eu creio que são as memórias desses bons momentos que nos fazem seguir em frente e esperar de dias melhores. Nesses quase três meses de isolamento passamos por muitas datas importantes e que tiveram que ser comemoradas à distância. Meu aniversário (a Thayane de 31 anos ainda não viu os amigos, não deu um rolê na cidade!), aniversário da minha irmã, sobrinha, dia das mães, a defesa de doutorado de uma amiga muito querida e tantas outras coisas. Tantos motivos para comemorar e que ficou “pendente” pra depois do isolamento, só não sabemos quando será. Tudo isso que é tão bom e faz muita falta. É junho como eu já disse antes. Na vida “normal” essa hora já estaríamos pensando nas festas juninas. O São João é o xodó dos nordestinos e todos comentamos: “o coronavírus foi longe demais! Acabou com o São João!”. Brincadeiras à parte, este será um junho diferente. Apesar da retomada gradual das atividades, as festas é claro não podem acontecer (ainda). E, por enquanto, vestiremos nossa roupa xadrez para ficar em casa comendo as delícias juninas e conversando pelas redes sociais que são nosso alívio. Chamadas de vídeo, mensagens de texto (eu gosto, viu?!), Facebook e Instagram são os encontros possíveis nesse momento. Esse texto não teve pretensão de ser científico, afinal eu já tenho uma tese para escrever. E sobre isso eu falei bem pouco e foi proposital. Um dos assuntos mais comentados nesses tempos é como manter a produtividade com medo e sem saber do futuro. Bom, ando devagarinho. Qualifiquei em março e agora estou tentando aproveitar esse tempo para corrigir o texto a partir das considerações feitas pela banca. Além disso, tenho tentado também me inserir como historiadora que atua no campo das ciências e da saúde. Mas com calma e fazendo o que posso porque as incertezas também me deixam angustiada. Voltando ao texto aqui exposto: ele foi construído a partir das saudades de andar pela cidade e encontrar as pessoas amadas. Todas as fotos fazem parte do repertório pessoal que, juntamente com as lembranças, me mantém viva em dias difíceis. E não querendo explorar as questões tristes que a pandemia nos traz (e são muitas, nós sabemos e estamos vivendo), esse texto também quer ser um abraço de esperança. Esperança de que em breve poderemos viver bons momentos e encontros. Por enquanto: cuidemos do que é valioso. E lutemos para que todos possam também assim fazer. Sobre a autora: Sou doutoranda em História das Ciências e da Saúde na Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz e desenvolvo tese sobre o processo de disciplinamento do misoprostol (medicamento utilizado para aborto) no Brasil. Nesse texto lancei mão das saudades, lembranças e dos desejos que aguardam o fim da pandemia. E-mail: [email protected] Dia 4 de junho de 2020. Hoje acordei com a notícia de que já temos 89 caso de Covid-19 na cidade de Atalaia do Norte. Com preocupação à flor da pele escrevo esta mensagem. Estou há quase três meses em isolamento social na minha cidadezinha chamada Atalaia do Norte, na tríplice fronteira entre Colômbia, Peru e Brasil. Quando as restrições de isolamento social começaram a ser acatadas pelas autoridades locais, eu, mesmo sabendo do grau de estrago que a pandemia de Covid-19 estava causando em outras regiões, conforme diziam os noticiários, senti-me bem protegida e longe de ser alcançada por vírus. Pior, logo que cheguei, na primeira semana, peguei "um forte gripe" com sintomas parecidos aos do vírus. Quando profissionais de saúde souberam, pediram meu isolamento social. Tinha vindo com muita saudade de rever meus parentes e amigos. Queria abraçá-los. Tenho a “minha mais velha” (shavoyomema, em língua marubo), chamada Iracy (Ni-shavo Kama). Queria muito estar na sua companhia, ouvir suas histórias, pois, pela sua idade avançada, não sei até quando tempo ela estará entre nós. Agora a preocupação de a não ver com mais tempo aumentou. O medo de perder meus parentes mais velhos não é paranoia minha. Tenho acompanhando pelas redes sociais (grupos de whatsapp, Facebook, Instagram e YouTube) que outras etnias vizinhas no território colombiano, peruano e brasileiro, principalmente na região do alto Solimões, estão perdendo grandes lideranças que têm uma trajetória de vida na luta por nossos direitos. Tradicionalmente falando, os mais velhos são importantes para as populações Indígenas. É uma perda irreparável. Não somos os brancos (nawa-rasin) que só dão importância aos conhecimentos que estão nos papéis. Nossa riqueza está na memória dos mais velhos. Como Marubo, digo que é o que nos torna yura-kuin, “gente de verdade”. É pavoroso imaginar que mais cedo ou mais tarde esse inimigo invisível chegará à minha região. A única coisa que me dá esperança é a luta de meus pajés. Assim como em outras etnias dessa região, meus parentes pajés estão tentando amansar a doença. Logo que cheguei, meu pai e outros que estão nas aldeias estavam se comunicando através da radiofonia para saber os sintomas do vírus. Depois fizeram pajelança da massa de jenipapo para que todas as populações se pintassem, mas não conseguiram, porque a ordem de isolamento social da prefeitura os impediu de fazer aglomeração na cidade. Ressalto que, como em qualquer outra região, os indígenas residentes nas aldeias levam seus filhos para estudar na cidade, e isso ultimamente tem aumentado. Muitos não têm veículo próprio para voltar a suas aldeias na época de férias. Movimentos como a União dos Povos Indígena Vale do Javari – UNIVAJA, juntamente com outras instituições, ajudaram, com gasolina e canoas, para que os estudantes indígenas e seus parentes retornassem a suas aldeias. Mesmo assim, ainda permaneceram funcionários dos estados e município. As compras de alimentação já eram difíceis, mas de uma hora para outra todos os comércios triplicaram os preços de suas mercadorias. As populações correm para fazer estoque e exageram. Vejo os que não têm emprego e que dependem dos benefícios do governo, da pescaria e da roça (agricultores), brigarem por migalhas, como sempre. Com a desigualdade social cada vez mais visível, é uma sensação desesperadora imaginar que isso não vai ter fim. Enfim, como não posso ajudar muito, a minha pequena contribuição está sendo manter meu pai informado sobre os sintomas do Covid-19 para dar continuidade à pajelança de amansamento do vírus, graças às instalações de rede celular que foram feitas em algumas aldeias. Havia vindo para entrevistar o irmão de minha mãe (meu koka Tama-sainpa), oriundo da aldeia maronal do alto Rio Curuçá, mas só tive tempo de realizar três encontros de entrevista. Ele viajou às pressas e não pude me despedir. Estava muito gripada, não podia sair de casa, e em seguida meu pai também viajou. A impressão é de que minha única arma é meu corpo pintado de jenipapo para amansar a doença, para que meus parentes das aldeias estejam protegidos, mas os meses de maio e junho estão tirando meu sossego. Desde que tivemos a confirmação do Covid-19 nesta cidade, o número de caso só está crescendo. Já noticiaram o primeiro óbito e, além disso, há notícias de que caçadores e pescadores estão invadindo nossa Terra Indígena. Entre a população em geral só se fala do presidente do Brasil, que espalha suas palavras espinhosas. Nosso futuro é cada vez mais sombrio, surgem cada vez mais mentes confusas. Que lição tiraremos daqui para frente? A tendência do Covid-19 é se propagar mais nesta região, pois a cidade vizinha, Benjamin Constant, afrouxou nessa segunda-feira o isolamento social. Ainda nesta semana os transportes fluviais entre Tabantiga e Benjamin Constant também voltarão a funcionar. Como vai ser o futuro? Que lições tiraremos disso tudo daqui para frente? Transcrição de mensagens áudio recebidas por Bruna Franchetto, com autorização da autora. Nelly Barbosa Duarte Dollis, da etnia marubo, é doutoranda no PPGAS/MN/UFRJ. O tema de sua pesquisa é uma revisão do sistema e das relações de parentesco marubo, do ponto de vista indígena. Nelly está em isolamento em Atalaia do Norte (AM), onde foi confirmado o primeiro caso de contágio por Covid-19. |
AutoresAna Cláudia Teixeira de Lima, PPGHCS/COC/Fiocruz Arquivos
Novembro 2020
|