Ao longo do ano de 2019, estudando a conformação dos estudos com vírus no Brasil, sob o ponto de vista da história das ciências, era inimaginável a projeção que estas “entidades morto-vivas” teriam nos primeiros meses do ano seguinte. Ainda no início de março de 2020, enquanto defendia minha dissertação sobre a chegada de uma nova doença viral na década de 1980, a dengue, o problema, embora mais próximo, parecia muito distante. Mas o fato é que os vírus tomaram uma projeção nunca antes observada. Seria impossível medir, atualmente, as inúmeras representações e metáforas criadas acerca desses patógenos, e, num futuro próximo, ainda será tarefa bastante trabalhosa. Um imaginário recheado surgiu, juntamente com um surto criativo. Nunca antes os parasitas intracelulares alcançaram tamanha fama. Agora, recluso em casa, acompanhado pelas poucas espécies de pássaros urbanos que cercam livremente o prédio, é inevitável não pensar em como nós, humanos, ignoramos as forças ecológicas até que elas se apresentem de forma incontornável. Foto: Acervo pessoal/documentário (Jorge Tibilletti de Lara, 2020) A experiência da quarentena não é unívoca. Embora tenhamos de enfrentar, às vezes, o tédio da rotina limitada, nossos sentimentos, pensamentos e sentidos brincam como num parque de diversões. Como doutorando, engano a mim mesmo, ao tentar me convencer de que teria alguma vantagem por, em condições normais, já trabalhar de casa. Mas o fato é que tudo mudou. Agora lemos e escrevemos nossos trabalhos enquanto lá fora ronda, junto de diferentes patógenos, hospedeiros vertebrados e invertebrados e outros objetos inanimados, um novo problema. A nova “espécie” de coronavírus trouxe consigo a clareza de que, se por um lado, a ciência e a tecnologia são fundamentais para a resolução dos grandes problemas contemporâneos, por outro, a sua negação é prática integral dos novos governos em todo o mundo. A disputa pela verdade, em diferentes escalas, não é feita unicamente no laboratório, e, por isso, grupos ideológicos acabam contornando a objetividade dos dados concretos da realidade, através de discursos desconexos, máquinas e atos violentos. Esse é um pequeno retrato do Brasil em 2020. Foto: Acervo pessoal/documentário (Jorge Tibilletti de Lara, 2020) A oscilação entre empolgação intelectual, medo, angústia, felicidade e ansiedade, faz parte da minha experiência na quarentena. Contudo, sem tantos prazos e pressões, as atividades de leitura e escrita seguem bem até o momento. Paralelamente, muitos projetos individuais apareceram. Sempre tenho ideias que vão além das minhas obrigações acadêmicas corriqueiras, mas agora elas ganharam um contexto oportuno. Para além do estudo de um novo idioma, cursos livres, listas de filmes e leituras de clássicos da literatura universal, um projeto em particular é o mais sintomático. Logo no início da quarentena, esbocei algumas ideias e comecei a documentar em vídeo a minha experiência. Essa espécie de “documentário experimental”, no significado mais simples que o termo possa adquirir, tem aglutinado diferentes questões que emergiram ou se tornaram mais concretas. Refiro-me sobretudo ao lugar ocupado pelo conhecimento científico hoje e ao negacionismo, e as tensões entre natureza e sociedade. Para mim, é possível refletir sobre todos esses pontos numa mesma “linha de raciocínio”, num mesmo “filme”, pois essas questões perpassam o meu dia a dia, estando não só presentes no meu gabinete, mas também na minha cozinha, no meu sofá e nas conversas que tenho. O fato é que estou vivendo da forma mais imediata e apavorante aquilo que minha formação em História das Ciências me fez ler nos livros. O extravasamento da natureza sobre a sociedade, ou a própria ilusão de uma divisão purificada entre essas categorias - invenção dos modernos, segundo Latour (1994) -, o drama das epidemias, as doenças, animais e microrganismos como atores sociais. A própria ideia de antropoceno, como era geológica marcada pelas profundas modificações de origem antrópica. Foto: Acervo pessoal/documentário (Jorge Tibilletti de Lara, 2020) Gravar a minha experiência na quarentena, refletindo sem escolha sobre todos esses pontos, é documentar, mesmo que de um modo e um recorte social particular, a vida no século XXI. Mas, embora pareça um projeto completo, roteirizado e sistemático, nada mais é do que uma sucessão das imagens possíveis de serem registradas numa quarentena, com algumas pequenas reflexões livres. Depois de já ter começado, vi que muitos projetos de historiadores públicos surgiram. A Associação dos Historiadores Públicos do Estado de Nova York, por exemplo, passou a incentivar seus membros a documentarem o cotidiano durante a pandemia, dado o impacto global histórico que os novos vírus estão causando. Do mesmo modo, historiadores alemães criaram uma plataforma online com o objetivo de coletar memórias da pandemia (Carvalho, 2020). Há uma necessidade de documentar, registrar, catalogar, de diferentes formas, a primeira pandemia do século XXI. Foto: Imagem colorida à lápis durante a quarentena, retirada do livro gratuito “The Public Domain Review: coloring book - for diversion, entertainment and relaxation in times of self-isolation, vol. 1”, acervo pessoal/documentário (Jorge Tibilletti de Lara, 2020) Menos pretensioso que esses interessantes projetos de História Pública, sem nem mencionar aqui as inúmeras outras produções e projetos das mais distintas áreas (artes, jornalismo, música, literatura, ciência), o projeto de documentar a minha vida durante a pandemia é, também, uma reação a algo que parecia tão distante, mas que não só está perto como constitui nossas sociedades. A emergência de novos vírus não é só o resultado das mutações genéticas desses patógenos. Ela é resultado também da presença humana em diferentes ecossistemas, da carência atual de governos que levem a sério os pressupostos dos cientistas, e, é claro, de um longo processo histórico. Os vírus e outros patógenos não são exógenos ao nosso mundo contemporâneo, não invadem nossas sociedades como alienígenas. Tal como os problemas de ordem sociológica, eles podem até não serem visíveis a olho nu, mas existem e nos afetam independentemente de nossas crenças, ideologias e alinhamentos teóricos. Foto: Acervo pessoal/documentário (Jorge Tibilletti de Lara, 2020) Documentar esta experiência é também produzir algo concreto em meio às incertezas que nos acometem. Se viver no Brasil já estava difícil e continuaria o sendo pelos próximos anos, a pandemia selou de vez a sensação caótica de estar vivo em 2020. Parece que não existe “bala mágica”[1]para este problema, mas valorizar o conhecimento e se engajar em projetos artísticos e filosóficos, pode ser um bom caminho para manter a sanidade, num nível pessoal, e a coerência, num nível profissional. O documentário não tem data para ficar pronto, mas será disponibilizado no YouTube, ainda em 2020. Foto: Acervo pessoal/documentário (Jorge Tibilletti de Lara, 2020)
Referências: CARVALHO, Bruno Leal Pastor de. Associação norte-americana pede a historiadores que documentem a vida cotidiana durante a pandemia (notícia). In: Café História – História feita com cliques. Disponível em:https://www.cafehistoria.com.br/associação-pede-a-historiadores-quedocumentem-a-pandemia-de-coronavirus/ISSN: 2674-5917. Publicado em: 17 abr. 2020. Acesso: [07/05/2020]. CARVALHO, Bruno Leal Pastor de. Historiadores alemães criam plataforma online para coletarmemórias da pandemia do novo coronavírus (notícia). In: Café História – História feita com cliques. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/memorias-da-pandemia-do-novo-coronavirus/ Publicado em: 7 abr. 2020.Acesso: [07/05/2020] LATOUR. Bruno. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994. [1]Expressão utilizada pelo bacteriologista alemão Paul Ehrich (1854-1915), em referência a criação de uma droga específica para combater uma doença específica, sem afetar células saudáveis do corpo. Jorge Tibilletti de Lara, Doutorando em História das Ciências e da Saúde (Ppghcs/Coc/Fiocruz) @jorge.tibilletti “Haverá alguma ‘linguagem’ própria do novo coronavírus?”. Perguntei, numa espécie de conversa reflexiva, íntima e improvisada, em que meus interlocutores eram grãos de milho crioulo (Zea mayz), em um dos primeiros dias oficiais de quarentena. “Milho crioulo” é o nome deste vegetal que deriva de uma bricolagem genética entre três espécies de gramíneas selvagens (o teocintle, o Tripsacum, e um pequeno milho de pipoca ancestral hoje extinto), uma “mistura” experimental feita por mãos humanas, que conta com a ajuda do vento (por onde o pólen viaja até ser capturado pelos cabelos da inflorescência feminina de uma planta adulta). Há quase 10 mil anos, este vegetal foi inventado pelas (e inserido nas) socialidades neolíticas da Mesoamérica, tendo descido o continente, com seus cultivadores, por diferentes trajetos migratórios.
Minha conversa reflexiva com grãozinhos de milho, de cultivos oriundos de aldeias de tradição guarani mbya e assentamentos rurais no Estado de São Paulo, teve por inspiração os ritos oraculares mazatecos (etnia mesoamericana que radica, maiormente, pela região da Serra Madre Oriental, no estado mexicano de Oaxaca), e por companhia, recordações de trabalhos de campo e as palavras de alento que uma chjota chjine (uma senhora sábia, curandeira) mazateca acabara de me enviar, naquele mesmo dia, via WhatsApp. Nos ritos oraculares mazatecos que menciono, os condutores de discursividades são grãos de milho crioulo que devem ser arremessados sobre uma superfície de tecido estendida em uma mesa, em “boleomancia” (do grego, prática de “ler o que for atirado”). Os grãos lançados são analisados por uma ou um chjota chjine (curandeira ou curandeiro), e permitem localizar almas perdidas e, assim, identificar a causa de determinadas enfermidades. Uma vez em procedimento de leitura e transmissão destas informações traçadas, pelas constelações que os grãos de milho formam sobre o tecido, toda e qualquer palavra dita é “palavra-florida de milho”, e esse tipo de palavra pertence a um “mundo florido”, um mundo convivente com o “mundo humano”, onde habitam seres de outro tipo que têm potencial de vida e morte, cura e enfermidade, com os quais os humanos precisam manter relações de respeito e reciprocidade. Qualquer palavra dita em rito de leitura de grãos de milho é chamada de “én najmé” e tem a propriedade de identificar doenças e localizar almas perdidas. Para que o milho possa ter mencionada propriedade, ele precisa estar fértil, podendo completar seu ciclo vegetal. Quando não está em qualidade fértil, quando é contaminado por pólen transgênico (que contém genes provenientes de bactérias que foram inoculadas em laboratório nos grãos de milho), as sementes se tornam suicidas, estéreis, e sua voz oracular silencia: ele perde a possibilidade de nascer e de ter um ciclo direto de vida social e natural, e sua agência e discursividade se esvaziam. Os cultivadores passam a precisar comprar sementes transgênicas para plantá-las, e estas sementes trazem venenos letais a diversos seres polinizadores em seu pacote biotecnológico. Minha conversa reflexiva com o milho me fez recordar que sua propriedade oracular e sua presença em ritos cosmológicos específicos, se manifestam de várias formas em outras regiões do continente. Procurei pensar nos locais de onde provinham os grãozinhos com os quais eu conversava. Na região do sudeste brasileiro, os guaranis mbya (grandes cultivadores de milho crioulo – em guarani, avaxi ete’i, lit., “milho verdadeiro”) realizam o rito do Avaxi Nhemongaraí, em que as almas femininas de parentes distantes podem ser identificadas através da análise que os xeramõie as xejarayi(“anciões e anciãs sábias”) fazem do mbojape, um bolinho confeccionado com grãos de milho moídos, misturados com água, e cozidos ao fogo de chão. Camponeses mestiços do MST, da região metropolitana de Sorocaba, também fazem uso de milho crioulo (de que são guardiões de sementes) em rituais cosmológicos-festivos (como a Festa Junina, em que se confecciona inúmeros pratos que têm o milho como ingrediente principal) e, também, para atividades cotidianas e lúdicas, além da nutrição proporcionada pelo seu alto valor energético: com as palhas de milho, as camas são acolchoadas, permitindo sono com sonhos mais vívidos; e da inflorescência feminina do milho é possível criar bonecos que divertem e aguçam a imaginação infantil. A reflexão sobre a pergunta que realizei aos grãos de milho em minha conversa improvisada, sobre a possível existência de uma “linguagem do novo coronavírus”, longe de ser informativa e direta, mostra-se retroativa e densa. A atitude silenciosa desse vírus, de invadir os núcleos celulares e pirateá-los, causando asfixia e morte de mais de 200 mil pessoas em todo o mundo, em muito permitia recordar a contaminante atitude sem escrúpulos dos genes transgênicos que viajam pelo vento em forma de pólen, e que (antes de serem esse material fecundante) foram elaborados, patenteados, e insertados nas sementes de milho por mãos humanas em práticas laboratoriais de Engenharia Biotecnológica de empresas multinacionais, com fins expressa e decisivamente lucrativos. Perguntei aos grãos de milho: “se as doenças desarticulam almas, que classe de doença é causada pelo novo coronavírus e quais tipos de almas estão sendo desarticuladas?”. Como isto permitiria refletir essa virulenta “linguagem”? No dia 20 de abril de 2020, confirmou-se o primeiro caso de contágio por COVID-19 na Serra Mazateca, e o paciente faleceu pouco tempo depois, fato que levou à suspensão do funcionamento rodoviário e comercial entre diferentes municípios e povoados e à declaração oficial da quarentena. No dia 22 de abril de 2020, a Terra Indígena do Jaraguá, complexo de aldeias guaranis mbya na cidade de São Paulo (capital do Estado de São Paulo), local que teve pouco acesso a testes de COVID-19 e que tem condições muito precárias para tratamento e prática de isolamento físico, teve a confirmação de um primeiro caso de contágio, estando o paciente, atualmente, com sintomas leves sem sair de sua casa. Pouco antes do início da quarentena de combate à pandemia, no dia 30 de janeiro de 2020, parte de um território ligado à TI do Jaraguá, lugar de mata atlântica nativa, foi invadido pela Construtora Tenda, contando com funcionários que em curto tempo, derrubaram mais de 4 mil árvores nativas. A Construtora Tenda, com alvará aprovado pela Prefeitura da Cidade de São Paulo em tempo recorde, estando liberada “oficialmente” pelo Estado e município a utilizar o território e desmatar a região, apresentava como projeto a construção de um condomínio de alto padrão, de prédios com vista para o Pico do Jaraguá (o ponto mais alto da cidade). Os guaranis expulsaram os funcionários da empreiteira, e organizaram um acampamento de vigília ao qual deram o nome de “Ocupação Yary Ty”. Este acampamento durou quarenta dias, contando com diversas atividades rituais e lúdicas, e com a ajuda da mídia livre nacional e internacional. No dia 10 de março, a Polícia Militar, a mando da Construtora Tenda, invadiu a rodovia que dá acesso ao local, e os indígenas responderam com um protesto com cantos, rezas, cartazes, e com o acordo de deixarem o acampamento enquanto o espaço se mantinha juridicamente embargado, podendo manter a vigília do lado de fora do local. Com a declaração da quarentena em combate à pandemia, alguns dias depois, os indígenas voltaram ao interior de suas aldeias para cumprir com o isolamento físico recomendado, mas o que não esperavam aconteceu: uma nova invasão de empreiteiros ligados à Tenda, escoltados por policiais no espaço da Ocupação Yary Ty, foi verificada no início do dia 25 de março: eles ingressaram na região pela madrugada, chamando a uma das lideranças ao local para “conversar”, enquanto distribuíam cercas elétricas e câmeras em postes. Os indígenas denunciaram o ocorrido desde então, em redes sociais e a órgãos competentes, mas somente a partir do dia 07 de abril, por determinação da juíza da 14ª Vara Cível Federal de São Paulo, as obras e os manejos arbóreos foram declarados suspensos por tempo indeterminado. Nesse mesmo período, a distribuição de alimentos orgânicos, oriundos de cultivares crioulos feitos por camponeses mestiços de assentamentos rurais (vinculados ao MST – com territórios reconhecidos pelo ITESP e pelo INCRA, no fim dos anos 1990, no intuito de atender a demandas de reflorestamento de zonas desertificadas pelo agronegócio) da região metropolitana de Sorocaba (a 100 km de São Paulo capital), passou por um processo de reelaboração: uso de EPIs protocolares e de um revezamento de locais de ponto de entrega dentro dos perímetros urbanos foram as medidas que permitiram dar continuidade às atividades da Comunidade que Sustenta a Agricultura (CSA, ver: http://csasorocaba.org.br/), um projeto que reúne agricultores assentados e co-agricultores que vivem nas cidades dentro da lógica da “cultura do apreço” (em vez da “cultura do preço”), e da “economia solidária”. A reelaboração contou com ciclos de doações de alimentos da CSA a entidades e bairros carentes. Campanhas de abastecimento de alimentos, sabonetes, álcool gel e outros EPIs, também foram articuladas pelos membros da CSA no intuito de serem encaminhadas à aldeia Guyra Pepo, de tradição guarani mbya, localizada no município de Tapiraí (na região metropolitana de Sorocaba), atendendo-se a medidas protocolares necessárias durante todo o transporte. A aldeia Guyra Pepo, aliás, tem profunda ligação com a TI do Jaraguá, e sua identificação agrária lembra a atual ação destrutiva da Construtora Tenda: há 20 anos atrás, guaranis mbya foram despojados de seus territórios na cidade de São Paulo, próximo à região do Jaraguá, para a construção da Rodovia Rodoanel Mário Covas (com projeto aprovado em 1998, quando desmataram a área e iniciaram sua construção). Os indígenas protestaram e entraram com recurso pela ação das construtoras rodoviárias, mas somente em 2018, puderam receber uma indenização que os possibilitou a aquisição deste território (de aprox. 400 hectares) em Tapiraí. Minha conversa reflexiva com os grãos de milho revela destruição. Revela que o novo coronavírus inaugura um momento em que a “magnitude” humana (moderna, pós-colonial e pós-industrial) é questionada. Revela que a derrubada de árvores num decisivo descompromisso com a produção de oxigênio (agora escasso aos pacientes com COVID-19), e a modificação genética de organismos vegetais junto à expansão desenfreada de uso de venenos que afetam vias respiratórias humanas e de outros animais (quebrando correntes de polinização natural, assassinando invertebrados e vertebrados), são ações que contam com um apoio irresponsável de autoridades negacionistas, engajadas a matrizes bioéticas que separam o ser humano da natureza, e que derivam das lógicas coloniais de extrativismo, monocultura e monopensamento. Estas mesmas medidas, como afirmam as hipóteses mais aceitas até o momento, foram responsáveis pela elaboração (mediante mutação a partir de outros vírus-corona) e propagação deste novo coronavírus. A invasão agressiva do habitatde polinizadores morcegos (Horseshoe bat), e o consumo alimentar excessivo de sua carne (feito amplamente em países asiáticos, e fortemente na cidade de Wuhan, China), causaram estresse e estados somáticos peculiares para que estes mamíferos voadores pudessem se tornar hospedeiros resistentes e, assim, vetores de transmissão dessa espécie de “infravida” que é o COVID-19. Se as bactérias inseridas na transgênese têm o potencial de exterminar a qualidade crioula do milho, e se os vírus de COVID-19 têm o potencial de enfermar toda a população mundial (configurando a “pandemia”), tanto os seres humanos quanto o milho em qualidade crioula estão, juntos, íntima e geneticamente ameaçados por seres microscópicos e invisíveis. Conversar com os grãos de milho, estes que têm em seus agenciamentos e discursividades as bricolagens crioulas dos indígenas e dos camponeses mestiços, permite entrever que a doença provocada pelo COVID-19 e aquela, anterior à pandemia, de ordem biotecnológica, transgênica, monocultural, ligada ao agronegócio, à especulação imobiliária e ao desenvolvimentismo, têm como linguagens uma espécie de “anti-voz” nociva, com poder de asfixiar (e silenciar) populações inteiras, de humanos e não-humanos. Uma possível reversão, de resgate e rearticulação de almas perdidas, dentro deste quadro somático-social pandêmico, está nas mãos das cultivadoras e cultivadores: está em suas cosmopolíticas, em seus ritos culinários, festivos e oraculares, no cuidado das sementes crioulas (dos quais são guardiãs e guardiões) e, portanto, na articulação de agenciamentos e discursividades que atravessam e comunicam diferentes ontologias, que atravessam sem invadir, sem devastar, extrair, dominar, silenciar ou asfixiar. Ana Paula Lino de Jesus [[email protected]] é doutoranda no PPGAS/MN/UFRJ. Seu projeto de pesquisa e de tese tem como título: “Quando o milho se cala: sobre as esterilizações do milho partindo da Serra Mazateca de Oaxaca, México”. Fez pesquisa de campo no México e, no Brasil, em aldeias guarani e assentamento agrários no estado de São Paulo. Compartilhar minha experiência como estudante de doutorado em Campo em meio ao confinamento social provocado pela epidemia do Corona vírus me leva diretamente a compartilhar essa experiência a partir da encruzilhada com a minha situação como imigrante nos EUA, como doutoranda negra, pobre, mãe ou qualquer outro identificador social que existisse nesse contexto de Pandemia. Se é verdade que a situação de isolamento social provoca efeitos sobre a escrita e a experiência da pesquisa de Campo que estamos vivendo, a Pandemia é apenas mais um marcador para estudantes não-brancos ficarem cada vez mais vistos como o “Outro”; a “Minoria” ou “Deficiente”. Trago breves vinhetas sobre minha experiência como estudante negra de doutorado em Campo e em processo de escrita da tese em meio a Pandemia. Enfatizo de antemão como o relacionamento com um grupo de mulheres negras de pós graduação me forneceu o apoio logístico, emocional e psicológico necessário para avançar em etapas da escrita e da pesquisa em Austin, uma vez que, antes mesmo da Pandemia, lidar com vários empecilhos e um ambiente adverso já era parte integrante da minha adaptação à cultura oculta existente nos programas de pós-graduação, que está cada vez mais se transformando num complexo industrial acadêmico. Agora, trata-se de lidar com uma educação corporativa acrescida de um novo cenário caótico: o da Pandemia. Para mim esse cenário só se tornou menos drástico, principalmente, quando elaborei um modelo de escrita em grupo na casa que estou residindo. Vim finalizar minha pesquisa de doutorado em Austin, a intenção de vir para os EUA foi, além de usufruir da infra-estrutura de bibliotecas e participar de congressos acadêmicos, foi experienciar o intercâmbio de inglês do Programa English & Social Justice, um programa de inglês para negros, artistas e estudantes militantes. Estou em confinamento social em uma casa com duas estudantes negras, uma em processo de pós-doutoramento, idealizadora do referido programa de inglês e a outra em fase de doutorado. Com uma semana que havia chegado em Austin a disciplina de escrita que havia elaborado foi interrompida pelo fechamento das bibliotecas. Com isso reorganizamos a pequena casa para ficarmos bem acomodadas. Compramos mais uma mesa, alteramos lugares de dormida e refeições e estamos dividindo esse pequeno espaço entre nós. As conversas e trocas de ideias sobre a futuridade da vida, escritas poéticas, danças e rituais de baforar ervas na panela são algumas práticas que estamos fazendo como parte do processo de escrita nesse cenário de Confinamento Social. Os cabos e fios conectores dos eletrônicos emaranha mais ainda nossas orientações mútuas e a parceria, principalmente, quando estamos todas em vídeo-chamadas com familiares e nos vemos apresentando as famílias de umas às outras. Somos todas imigrantes em território norte-americano; uma piauiense, uma paulista e uma cearense entre máquinas de escrever e robôs vivos, afinal compartilhar sentimento e intimidade com celulares e computadores se tornou a regra nesses dias de isolamento. A reciprocidade entre nós aumenta e compartilhamos a sensação de que já estávamos em isolamento devido ao ritmo de escrita e leituras intensivas e ao cenário muitas vezes castrador da academia. Perceber quenão estávamos preparadas nem para o isolamento da escrita de tese nem para o isolamento generalizado causado pela Pandemia tornou a nossa escrita colaborativa e o nosso apoio mútuo de orientação o projeto mais eficaz contra a tortura do isolamento emocional e pandêmico. A sensação é de sempre nos equilibrar e de estar nas margens, afinal quando se ingressa num programa de pós graduação e não se tem o mesmo conhecimento cultural ou social que os outros estudantes para evitar as armadilhas que atrasam o processo de formação e nem se tem outros recursos para facilitar o acesso a bolsas de estudos, publicações e programas de intercâmbio a tendência ao isolamento é um fantasma constante e contínuo na vida de estudantes negras. Sentimos nos primeiros dias de confinamento ao sair para o mercado e em caminhadas nos parques como a pandemia estava se tornando o bode expiatório de mais racismos e opressões sobre os corpos de imigrantes e negros. Olhares e distanciamentos antes camuflados agora estão mais explícitos sobre nós. Aqui ninguém anda pela mesma calçada com pelo menos 3 metros de distância, aqui três pessoas não podem ficar na mesma sessão do mercado, e se essas pessoas forem imigrantes e negras a distância se tornou um critério que precede a regra do distanciamento social. O transporte público se transformou no transporte exclusivo de negres, sem tetos e imigrantes. Tanto porque, para evitar o contato com o motorista, não há mais necessidade de pagar, quanto porque a maioria dos norte americanos possuem carros particulares. Se antes do Confinamento social os ônibus eram usados mais por pessoas negras e imigrantes das zonas mais pobres, agora se tornou um transporte exclusivo dessas pessoas que estão vagando em número expressivo das zonas pobres para as zonas ricas e usando o transporte público como meio de vagar. Para essas pessoas a condição de Outdoorsness, ou seja, de serem lançados ao ar livre, na rua, no exterior é a única condição que é possível de existir neste momento. Elas estão andarilhando na condição de terem sido lançadas para fora, “do Estado norte americano” ; “de casa”; “da família”. Com algumas lembranças dos escritos de Toni Morrison na sua obra “The bluest Eye” (1970) a sensação que fica é que o confinamento social tem um verso e um reverso; para que algumas pessoas possam voltar a viver “being outdoors”, isto é, sendo livres, num estado de viver ao ar livre outras precisam ser “being put outdoors”, isto é, são colocadas, expulsas e empurradas para fora, precisam ser postas para fora, seja de casa, do território estado e da condição de humano. Aqui é primavera e as flores brotam no asfalto. Era um dia de domingo, um domingo de páscoa, e decidimos caminhar pelas ruas de Ride Park, um bairro rico com casas históricas de Austin e aonde residimos. Paramos em frente a um terreno sem nenhuma construção e que por isso havia uma grande mata e um extenso campo de flores nativas lá dentro. Estávamos encantadas e decidimos tirar uma foto pegando todo o campo de flores. Uma senhora que passava do outro lado da rua exclama com um tom ameaçador: “Vocês sabiam que isso é uma propriedade particular? O dono não deve está muito feliz com o que vocês estão fazendo, cuidado”. Naquele dia, ironizamos aquela fala bem como o mal humor da senhora, para usar de pleonasmos. Seguimos. Continuamos seguindo a caminhada diária “no place to go”, na sensação de que está ao ar livre nem sempre nos garante viver “a liberdade”, mas estamos confiantes e otimistas de que o alecrim que colhemos nos quintais particulares para fazermos nossas baforadas, bem como as flores brancas que estão sendo usadas para nossos rituais de banhos nos permite um estado de desobediência e rebelião plena. Caridad entrou enérgica pela porta com seu “nasobuco” branco, sua bolsa de estampas africanas e sua vitalidade indiscutível, vociferando: “Corona vírus!” flexionando o braço e apontando o cotovelo em nossa direção, um cumprimento que parecia dizer: esse é o novo bom dia. Depois dos dois lances de escada, sentou-se ofegante na cadeira de balanço, tirando de outra sacola garrafas de água vazias enquanto cumprimentava sua filha, recém-saída dos afazeres domésticos, a responder ao pedido da mãe. “Ela vem pegar água aqui porque sua bomba está quebrada”, dizia Oyone. Eu e Ramón estávamos nas aulas de português e, quando chegou Caridad preenchendo o balbuciar desajeitado das tentativas de aprender um novo idioma, decidimos fazer uma pausa. “Haz un cafe Oyone, ya que Marcela he traído”, dizia Ramón, seu marido. O café, eu o tinha comprado no caminho que faço antes de chegar à casa deles; quatro pacotes de 115 gramas cada, no valor de 15 pesos em moeda nacional a unidade, na bodega administrada por um senhor complacente e que já entendia “como iba se poner mala la cosa”. Dei dois pacotes a Ramón, que estava sem nenhum; estes tornaram-se o café que tomávamos, quando Caridad diz:“El chisme este del corona vírus”. Chisme? Pensei. “Pero, Caridad, porque chisme?”. Em um tom eufórico, ela diz que no noticiário da noite anterior passou uma reportagem de uma “tienda estatal que se explotó”. “Que pasó?”, perguntei. Logo veio a resposta: uma “tienda” onde estavam superfaturando alguns produtos. “Chacha, el DTI bajó y cerró todo. Y allá simpre tenía cosas que ni tenia en las del shopping! La cosa se pone mala, mala.” “Y las colas malísima”, dizia eu. “Yo no me quedo en una cola de esas”, eles respondiam. “En Carlos III, la cola estaba llegando a tres cuadras, ahora están distribuyendo un ticket, o sea, no hay para todos y escuché que están llegando a las 4 de la mañana, es verdad?”, continuei. “Si, hija..”, me contestavam. Enquanto isso, Caridad tirava da bolsa de tecido africano pacotes de sal e óleo para dá-los a Oyone, ao passo que a conversa continuava sobre os insumos básicos. Estávamos em finais de março, foi quando outro interlocutor me disse que cancelariam o “Plante” de seu juego, ritual de iniciação Abakuá, já que todo evento qualificado como uma aglomeração de pessoas havia sido proibido. Foi nesse último encontro que ele me deu minha primeira máscara: “Para que te protejas. Cuidate!”, dizia. “Que sorte”, pensei. Poucos dias depois, o uso da mesma se tornou obrigatório nas ruas e nos ônibus, passível de multa caso não o fizesse. A vívida Havana rapidamente foi preenchida de silêncios e vazios. Hoje somente circulam veículos oficiais para a manutenção dos serviços básicos de alimentação, bancos e hospitais, o que impossibilita os reencontros devido a necessidade de transporte público. Nos pontos de acessos à internet, espalhados pelos parques da cidade, é proibido permanecer. As patrulhas passam com megafones pelas ruas: “Por favor, señores, atencíon a las medidas de securidad” e os noticiários divulgam as possíveis sanções por “propagación de pandemia”. O Estado, pela televisão, tranquiliza a população. Porém, algo ainda permanece: as imensas filas para conseguir itens extremamente básicos, como os de comida e higiene. As garrafas de plástico com “solución clorada a 0,1%” ou um pedaço de sabão são os primeiros itens na entrada de qualquer “tienda, bodega o agro”, seguidas por filas que evoluem de quadra em quadra, por pessoas que não se importam com sol, calor, horas de espera ou os controles policiais do Ministério do Interior pois, ao final, se espera levar para casa dois ou um item - de acordo com as regulações de produtos por pessoa- dos parcos produtos ofertados, quando ofertados. Nesse momento, Caridad já pegou suas garrafas de água – agora cheias- e um pouco de arroz com Oyone e Ramón, que me perguntaram se eu também queria: “No, gracias”, disse. “Tu lo sabes, se necessitas algo, llamame!” replicavam. Aqui, assim se dribla a crise; na ajuda mútua possibilitada nas relações entre amigos e sócios. “És que el cubano ya pasó por algo peor y estamos vivos, chacha”, diziam entre um ou outro muxoxo. “De hecho, yo creo que nunca salimos del período especial”, alguém deixou escapar. Talvez, “el chisme” do Corona vírus esteja aí; no reviver cotidiano de uma memória que parece nunca ter sido verdadeiramente parte dos reinos do passado, não nas questões da medicina que, mesmo com todas as dificuldades, nunca chegou a ser um problema factual. Marcela Andrade é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, UFRJ. Participante do Laboratório de Antropologia e História (LAH/PPGAS/MN) onde desenvolve uma pesquisa sobre Sociedad Abakuá, seus aspectos societais, práticas religiosas e suas confluências artísticas. - O que acho da pandemia coronavírus? A doença veio do país da China, do lugar chamado Wuhan. Esse vírus, esse kugihe, ele é muito forte, muito perigoso. Isso me assustou e me assusta muito. Vendo notícia na televisão, acompanho desde que saiu a primeira notícia que o vírus estava se espalhando na China, eu fiquei muito preocupado. Começaram a viajar, deixaram os voos de avião transitarem normalmente, começou a se espalhar rapidamente, para Itália, Estados Unidos, veio para o Brasil. Em 17 de fevereiro registraram o primeiro caso no Brasil. Isso nos deixou todos assustados, povos indígenas, lideranças. Essa doença, muitos dos mais velhos falaram que ia acontecer alguma coisa de ruim no mundo. O ano passado teve eclipse de lua, eclipse de sol, os mais velhos têm uma forma de interpretação, pelo formato da eclipse, falaram que ia ter uma coisa ruim, uma doença, para todos. Na eclipse teve muito do lado dos kagaiha(dos brancos) e muito pouco do nosso lado. O que está acontecendo confirma o que os mais velhos falavam. Muita gente está sofrendo, muita gente está morrendo. Isso me fez pensar muito. Sabemos como a nossa cultura funciona, mas não profundamente. Fiquei preocupado, precisamos manter essa observação das constelações, da natureza; os cantos dos pássaros avisam, ou coisa ruim ou coisa boa. Os mais velhos estão falando: “Está vendo? Isso já sabíamos”. - Quando teve a primeira morte no Brasil, FUNAI e ATIX (Associação Terra Indígena do Xingu) se reuniram e fizeram um documento como protocolo de segurança para ninguém entrar nas aldeias, uma forma de controlar a proliferação da doença. Os casos no Brasil foram aumentando e, então, o protocolo foi para ninguém entrar e ninguém sair (das aldeias). A ATIX se mobilizou e o Distrito (de Saúde Indígena) deu suporte para que as pessoas que moram em Canarana conseguissem combustível e fossem para as aldeias, fugindo da doença., se fechar na aldeia. Muitos saíram da cidade para as aldeias, outros preferiram ficar, os que já são mesmo moradores da cidade. Eu falei que ficaria em Gaúcha, pelo medo de levar doença. Lembrei da história quando os Kalapalo foram contaminados na década de cinquenta pelo sarampo, muita gente fugiu para as aldeias levando o vírus. Pensando nisso eu disse: “não vou para lá”. Minha família ficou preocupada, assim como a família da minha esposa. Se a gente levasse o vírus, seria uma tragédia, eu me sentiria muito culpado. Fiquei aqui. O pessoal ficou uns 15 dias fechado. Meu pai, que mora numa aldeia mehinaku, disse que parecia que estava tendo uma guerra, o sentimento ficou muito forte, muito medo, todos ficaram nas casas. Quando saiam para fora, ficavam com medo do vírus chegar pelo vento. Havia muitas informações e ninguém conseguia explicar direito. Fecharam a estrada dos Kalapalo que vai para Querência e Canarana. Depois começaram a sentir falta principalmente de combustível. Nas aldeias tem muitas motocicletas, estava acabando sabão, muitos dependem da alimentação da cidade. Isso fez com que começassem a quebrar a regra. Tem um grupo na ATIX que recebe denúncias contra os que querem sair para as cidades. Quando teve um caso suspeito em Querência, todos ficaram assustados, mas, mesmo assim, havia quem não queria obedecer. Em Canarana já teve um caso confirmado, curou, não tem notícia de outro, espero que não tenha. Tem uma minoria que não respeita a barreira. Alegam que precisa de combustível, sabão, café, principalmente, já viciou. Estamos tentando barrar, mas está difícil. - Aqui em Gaúcha ainda não tem suspeito, mas estamos em alerta, a entrada na cidade está controlada, mas a circulação é normal. Tem casos confirmados em Canarana, em Rondonópolis, União do Sul e a gente está no meio. Também em Paranatinga tem suspeito. Em Cuiabá está morrendo gente. Tem cinco mortos em Mato Grosso. A contaminação está aumentando. Aqui em Gaúcha, no começo queriam fechar tudo, mas depois houve protestos dos que dizem que dependem da venda, do comércio. Fizeram uma regra meio aberta., mas não funcionou. A polícia está atuando para evitar aglomerações. Eu particularmente estou meio fechado, mas a Câmara continua as atividades. Respeitamos a distância de um metro e meio. Continuamos as reuniões, mas agora fechadas ao público. Não tem movimento para as aldeias, mas continua vindo gente para cá, das aldeias mais próximas. Isso que está acontecendo. Mutua Mehinaku Kuikuro [[email protected]] é líder do povo Kuikuro, Alto Xingu, MT e, hoje, vereador da Assembleia Legislativa do Município de Gaúcha do Norte (MT), cidade próxima da Terra indígena do Xingu. Concluiu mestrado no PPGAS em 2010 com a dissertação “Tetsualü: pluralismo de línguas e pessoas no Alto Xingu”. Estou bem, em casa com minha família. Esta semana fiquei sozinha em casa, minha mãe foi pra roça e eu não podia ir porque estou aqui trabalhando, escrevendo. Aqui não é tão ruim porque meus irmãos moram todos perto. Minha mãe tem ido para roça; tem dias que vou para lá também porque é mais tranquilo. A bolsa está ajudando. Aqui na nossa região tem muitas famílias pataxó, que, em Coroa Vermelha, dependem do turismo, da venda de artesanato; como as terras indígenas são pequenas, não têm outro meio de sobrevivência. Poucas famílias possuem uma pequena roça para agricultura, minha mãe é uma dessas pessoas, está plantando hortaliças, milho, abobora. As lideranças têm buscado parceria com algumas instituições, com a Funai, prefeitura, empresas. Estão catando apoio para conseguir cesta básica para as famílias que estão em dificuldade; as aposentadorias conseguem suprir um pouco. Em outras comunidades, como Barra Velha, tem o mangue e o mar que dão um pouco de alimento para sobreviver, o pessoal sai para mariscar nas pedras, catar caranguejo no mangue, mas não tem mato para caçar; as matas que ainda têm são todas de preservação. Na semana passada fiquei tensa, deve ser pela DPM, fico mais sensível, não conseguia me concentrar. Aí eu saio, aqui temos um quintal grande, fico capinando, gosto de fazer mudas de plantas. Minha mãe chegou agora mesmo da roça, trouxe umas coisinhas, folhas de repolho, cebolas. Agora estou aqui no computador. Não estou me sentindo só. Não estou ouvindo notícias do coronavírus para não ficar mal, mas hoje vi na televisão, mais duas mil pessoas mortas, tristeza...o mundo vai ficar, sei lá...nós vamos.... Tem uma parente (indígena) no Rio Grande do Sul, antropóloga, está com coronavírus, está postando no facebook. Tenho saído só quando necessário, com cuidado. Aqui perto em Santa Cruz Cabrália tem cinco casos. Depois converse com Nelly, que está numa região mais difícil, as coisas demoram sete dias para chegar lá e tudo encareceu muito, não tem transporte, de vez em quando me conta da vida dela. Pois é, e como você está? Este mês está caindo bastante chuva, aí a internet fica ruim. Estamos aqui na luta. Tenho meus irmãos e minha irmãs. Estas também trabalham na escola indígena, a prefeitura demitiu por conta deste período, não tinha necessidade já que os recursos do ministério vêm para cá, os professores estão entrando com uma ação. O dinheiro da bolsa acaba servindo para ajudar eles também. Um abraço aí, se quiser ligar, se sentir muito só, pode ligar. Depois vou mostrar meu quintal que estava limpando, tinha muito mato. Transcrição de mensagens áudio recebidas por Bruna Franchetto, com autorização da autora. Anari Braz Bomfim, da etnia pataxó, é doutoranda no PPGAS/MN/UFRJ. Seu projeto de pesquisa e de tese desenvolve e aprofunda o tema de sua dissertação de mestrado: a retomada do Patxohã, língua originária do povo Pataxó do sul do estado da Bahia. Está em isolamento em Coroa Vermelha (BA). - Eu estava indo e voltando, resolvendo pendências do curso, mas nesse período tive que ficar no confinamento. No dia em que ia comprar passagem para voltar para a aldeia, não vendiam mais. Estou aqui no Rio, tentando escrever, ler, aproveitando esse confinamento, mas estava sentindo muita dor no peito, crises de choro, não sei o que deu em mim. Desde dezembro fiquei no hospital com meu ex-marido doente na UTI em coma, minha filha com bebezinho, muita coisa que estava enfrentando, estava carregando muita coisa nas minhas costas. Me deu um negócio bem estranho, deve ser por causa do confinamento, só saio para comprar comida. Entrei num surto, não estou me sentindo bem...pedi ajuda. Está difícil. Queria ficar na aldeia, mas não consegui mais. O corpo não aguenta o confinamento. Tentei ficar tranquila e concentrada, mas está difícil.
- Obrigada pelas palavras, hoje estou mais tranquila. Estava sentindo muita dor no peito. Depois que recebi muitas mensagens de pessoas, conversas, aliviou. Alguns parentes vieram trazer comida, fazer as coisas pra mim, como aldeia mesmo. Na aldeia sempre tem fogueira, a gente conversa, fuma, conta piada, história. Agora e aqui, tudo vem à tona com muita força. Estou melhor. Vou buscar outra forma de me fortalecer. - Estou acostumada a viver confinada em certos lugares, mas o confinamento que faz a gente pirar não é o confinamento indígena, porque nós temos nossas regras. Este confinamento é na cidade, num lugar totalmente diferente, sem chão. O lugar onde pode ficar confinada sem pirar é com chão. A angústia vem por causa disso. Quero saber de você, como você está enfrentando, fico preocupada com as amigas, com as pessoas que eu gosto. Te ouvir agora fiquei mais aliviada também. Transcrição de mensagens áudio recebidas por Bruna Franchetto, com autorização da autora. Sandra Benites [[email protected]], da etnia guarani nhandewa, é doutoranda do PPGAS/MN/UFRJ. Seu atual projeto de pesquisa trata da vidas das mulheres guarani e tem como título: “Mulher falando: fundamentação do teko tekohaa partir da visão das nhandesy kuera do Mato Grosso do Sul, mostrando várias facetas kunhangue reko”. - Boa noite! Estou em Atalaia do Norte desde o dia 11 de março. Estou me recuperando de uma gripe com suspeita de que foi coronavírus. Graças a Deus, como dizem os nawa, estou ficando boa. Emprestei outro chip para poder me comunicar, o chip que tenho não funciona; às vezes demora uma semana para conseguir baixar um áudio curto ou um vídeo curtinho. Só tenho internet do celular. Quando chove, piora ainda mais. Espero que todo o mundo que conheço esteja bem. Estou no fim do mundo, no final da Amazônia, não estou muito bem de saúde, não consigo andar direito. Ainda bem que consegui fazer algo da pesquisa antes de adoecer, uma longa entrevista, importante, mudam as opiniões que eu tenho com relação ao que eu já coletei. Vamos ver se desenrola.
Os parentes foram removidos para as aldeias, a cidade ficou praticamente vazia...de indígenas. Com a notícia fugiram para as aldeias. Estou só em qualquer lugar. Para mim era uma notícia tão distante...só me dei conta quando estava no meio, estava preocupada com o desenrolar da escrita da tese, não estava me importando com as notícias. Estava cega e surda. - Estou com sangramento nasal e vertigem, deve ser efeito da gripe; a febre passou. Atendimento? Não fizeram nada, só uma conversa, sem medicamento, fiquei muito mal, garganta estragada, febre alta, tosse, diarreia, todos ficaram apavorados comigo. Duas semanas, foi sufocante, achei que estava lascada. Aqui ninguém pode se deslocar para a cidade vizinha, e é pior por ser fronteira. Deveria ter voltado para Manaus no dia 25 de março, depois mudou para o dia 31 e agora remarquei para o dia 13 de maio. Está difícil, cada vez o voo é cancelado. Não sei quando vou conseguir voltar. Transcrição de mensagens áudio recebidas por Bruna Franchetto, com autorização da autora. Nelly Barbosa Duarte Dollis, da etnia marubo, é doutoranda no PPGAS/MN/UFRJ. O tema de sua pesquisa é uma revisão do sistema e das relações de parentesco marubo, do ponto de vista indígena. Nelly está em isolamento em Atalaia do Norte (AM), onde foi confirmado o primeiro caso de contágio por Covid-19. |
AutoresAna Cláudia Teixeira de Lima, PPGHCS/COC/Fiocruz Arquivos
Novembro 2020
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