Rio de Janeiro, 23 de outubro de 2020, ano pandêmico. Uma das coisas que nós, pós-graduandos, mais temos que lidar são os prazos. No mestrado, vinte e quatro meses contados para terminar. No doutorado, quarenta e oito meses. Tem prazo do exame que chamamos de qualificação - recomendado que ocorra na metade do tempo total do curso. Tem prazo para entrega de trabalhos de disciplina, geralmente um mês depois que o curso acaba. Tem prazo também para submissão de artigos para revistas acadêmicas, para inscrição em congressos e simpósios, para envio do texto completo, para envio de relatório interno, para atos administrativos do curso, ufa! Se quiser, também podemos contar com o prazo de inscrição no processo seletivo para ingresso no curso de mestrado e doutorado - talvez um dos primeiros e mais corridos. Enfim, prazos e mais prazos. Mas qual é o prazo da pandemia? Consigo enxergar a preocupação com o prazo da pandemia quando meus pais, meus mais velhos, perguntam “quando isso vai acabar?” ou “rezo para que isso termine logo”. Quando minhas sobrinhas de dez anos de idade, gêmeas, minhas mais novas, dizem “a quarentena é muito chata, será que acaba no próximo mês?”. Meus mais velhos e minhas mais novas são referências para mim nesse momento. A paciência de minha mãe em tornar nosso espaço um lugar de bem-estar junto ao futuro visto explicitamente nos olhos de minhas sobrinhas são algumas coisas que me fazem seguir. Um misto de desespero (sim! é desesperador!) e esperança (seria essa palavra?) marcam esse momento pra mim. É desesperador ver um projeto de genocídio de jovens negros oportunizado com um vírus pelo Estado. Como o que vimos, o que vemos e o que tragicamente aguardamos ver. O que vi: um querido eterno aluno tendo sua vida retirada pelas mãos do Estado. O nome dele é Rodrigo - Uma vida . O que ouvi: os tiros das armas protocoladas pelo Estado que tiraram a vida de Matheus na esquina de minha rua. A esperança… ela tá aqui, mas ela é mais difícil de ser expressa nessa linha. Mas a sensação de semanas atrás (ou meses?) na contagem perdida dos dias é que o prazo da pandemia foi prorrogado. Pra quando? Alguém poderia perguntar num grupo do whatsapp. Ninguém sabe. Sem resposta. Manifestação por justiça pelo assassinato de Matheus Oliveira, 23 anos, na rua São Miguel, Morro do Borel, Rio de Janeiro/RJ. (Foto: Jacques Pinto, junho/2020) Parede de quarto: Nada é tão nosso quanto os nossos sonhos. (Foto: Jacques Pinto, abril/2020) Autorretrato: selfie. (Foto: Jacques Pinto, outubro/2020). Trabalhar com prazo, mas sem sabê-lo. No meio da pós-graduação, isso não existe - inclusive os prazos estão aí, o relógio da pós-graduação não para. O calendário tá acessível. A avaliação já está marcada. Apesar disso, o prazo da pandemia não sabemos. E aí, o que fazer? E acho que esse é o verbo: fazer. O que dá pra fazer num prazo prorrogado e indeterminado como esse? Dá pra ter prazer? Dá pra não se desesperar? Dá pra não se isolar ainda mais? Poderia falar aqui sobre como estou tentando burlar as ansiedades, existir dentro desse espaço da pós-graduação no contexto da pandemia que me é resistência muito antes do vírus chegar, explicar como substituir conversas de café, corredor e ônibus por ligações e mensagens para criar e manter laços. Mas o que dá vontade de fazer é perguntar mais uma vez: qual é o prazo? Qual é o prazo pra esse inferno acabar? Com o prazo da pandemia prorrogado, ao invés do alívio que poderia surgir caso fosse da entrega de um relatório, a ansiedade misturada com desânimo aumenta. Para alguns, parece que o prazo terminou há um ou dois meses atrás, mas pera aí? Ninguém avisou? Ela vai acabar. Mas os outros prazos de outros infernos na terra irão acabar também? Já me senti durante esse período como se estivesse dentro do túnel dos irmãos Rebouças no sentido Zona Norte (fugindo do planeta de aparência branca chamado Lagoa). Naquela galeria maior, num trânsito infernal, no calor do verão carioca, ônibus lotado sem ventilação, suor escorrendo pelas costas enquanto seguro a mochila pesada, tentando ver literalmente pela brecha entre as pessoas a luz do fim do túnel. Me sinto numa curva pela sensação do tempo já transcorrida que dá a ideia de que a abertura está lá, mas ainda distante. Túnel Rebouças. (Foto: Gaban. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Túnel_Rebouças . Acesso: outubro/2020) Vamos seguindo do jeito que dá. Tem gente que vai dizer que o pior já passou. Mas aí vem uma pergunta: o que é o pior pra você? Fico no aguardo se alguém descobrir o prazo. Sobre o autor: Jacques Ferreira Pinto, PPGHCS/COC-FIOCRUZ, 23/10/2020, Rio de Janeiro/RJ. Atualmente na tese de doutorado, pesquiso a busca por liberdade de africanos e seus descendentes escravizados por motivos de saúde e doenças numa comunidade rural chamada Vínculo do Jaguará em Minas Gerais durante o século XIX. E-mail para contato: [email protected] / @jacques.pinto.
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AutoresAna Cláudia Teixeira de Lima, PPGHCS/COC/Fiocruz Arquivos
Novembro 2020
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