Completando três meses e alguns dias nessa quarentena interminável, após mergulhar a cara nas mídias sociais para me informar ao máximo possível sobre os últimos acontecimentos nesta cidadezinha pacata do interior do Amazonas, nas confluências da tríplice fronteira, onde ainda me encontro devido ao surto da pandemia do Covid-19 no Amazonas, e principalmente em todo o trapézio amazônico, penso sobre essa doença que atinge grande parte da população urbana e principalmente os povos originários que habitam essa região, como os ribeirinhos, e também as comunidades tradicionais não indígenas, que se localizam às margens dos rios Solimões e javari. A situação se agrava diariamente, com informações de mais casos confirmados, em sua maioria destas populações, que sofrem com a falta de estrutura médica e social nesta área que está sendo arrasada pelo covid-19. Ia eu fazer minha pesquisa de campo numa aldeia Ticuna de outro município vizinho, mas só fiquei a ver navios, ou melhor, usando-me de um termo mais regional, só fiquei de “bubuia”, pois não posso sair até que toda essa situação seja reparada. Logo no início, quando cheguei aqui nesse “fim de mundo”, também pensei como a maioria dos conterrâneos da tríplice fronteira, que essa doença não iria nos alcançar e que, se chegasse, não seria com tanta força. Fazer o que, foram tomadas medidas tardias demais, pois as autoridades competentes demoraram muito em decretar lockdown. Depois de me convencer de que realmente era necessário alertar as pessoas da gravidade da situação que estava se aproximando, tomei a liberdade de falar com o máximo de pessoas vindas do Peru e Colômbia para evitarem transitar de forma constante nos rios. Mas para compreender por que até este momento o fluxo de idas e vindas dessas pessoas ainda está acontecendo, mesmo com todos os decretos e medidas tomadas pelos municípios e adjacências, faço aqui uma reflexão em poucas linhas, passo a passo. Fonte: arquivo pessoal. Cumprindo a quarentena ao lado dos meus, torcendo para que os dias tenebrosos passem logo. Hoje me encontro preso em casa sem saber ao certo como estão essas pessoas que são parte de mim, ou, como dizemos na nossa língua, dau'cuenacüãgü (os de cima), e dói saber que as políticas públicas, de quem tanto enchem a boca para falar em tempos de política não estejam adiantando quase nada numa tentativa de conter um vírus que já está por toda a tríplice fronteira e que infelizmente chegou com muita força entre as populações originárias do famoso “pulmão do mundo”. As prefeituras municipais, juntamente com outros órgãos competentes, como a Policia Militar, Guarda Civil Municipal, Exército (“braço forte, mão amiga”), Aeronáutica, Marinha e também o famoso Dsei (Distrito Sanitário Especial Indígena), têm tentado conter “a todo custo” a propagação desse inimigo invisível, que a maioria no início estava tratando como uma “gripezinha", assim como nosso próprio governante afirmou em seu discurso. Muitas aldeias e comunidades ribeirinhas abandonadas à própria sorte por não ter uma assistência correta, ainda pedem para que essas mesmas pessoas fiquem em suas casas e parecem se esquecer de que essas pessoas necessitam, todos os dias, sair bem cedo de suas casas para buscar algo para dar de comer aos seus filhos e familiares. Quando não é isso, têm que se deslocar para os centros urbanos atrás de insumos que não existem nas aldeias, como açúcar, sal, laticínios e materiais de necessidade básica que só se encontra nos municípios, já que nem todos conseguem ser contemplados com as cestas básicas, pois há lugares de muito difícil acesso, e infelizmente nem todos são alcançados. E como esperar pelo governo na maioria das vezes é perda de tempo, acaba se tornando necessário vender sua força de trabalho em troca de ter o que comer no dia seguinte. Precisam trocar primeiro seus produtos por cédulas de papel para poder comprar o que precisam, mesmo com os preços abusivos que os patrões estão cobrando em seus estabelecimentos. Afinal de contas, aqui já estamos vivendo em cenários de filmes de ficção cientifica sobre o fim do mundo, em que quem tem oferece, e quem não tem “se vira nos trinta”, pois agora é tudo pela demanda e oferta, e não se pode deixar o capitalismo morrer. Não há para onde correr: ou se morre de fome ou de coronavírus. Não há muita escolha, já que nas aldeias a produtividade das roças e chácaras não tem sido mais em grande quantidade como antes e não se tem mais tanto peixe ou animais de caça em abundância, como antigamente. Mas agora já há “ajuda” do governo – pelo menos é o que dizem. Fonte: foto registrada por um funcionário publico, de aglomeração permanente no porto de Tabatinga – AM, município que faz fronteira com Leticia – AM, Colômbia. Pensou-se em oferecer, como sempre, “migalhas” para toda a população para acalmar os ânimos das “minorias”. Como sempre, oferecem-nos “pentes e espelhos". Chegado o dia de receber o “auxílio emergencial” (auxílio paletó de madeira), o que se presencia são filas enormes que dão do início da porta da única casa lotérica que existe no município até as ruas que dão acesso ao mesmo, e se encontram citadinos e ribeirinhos disputando por uma vaga para poder botar a mão na grana que vai ajudar a tirar a barriga da miséria por alguns dias, se for usada corretamente. Como de costume, o fluxo das populações nativas é constante nos município. Se há algum auxílio ou promessa de ajuda de políticos ou de acesso a algum benefício, chega-se a contagiar todos, atraindo-os cada vez mais às áreas urbanas de grande proliferação da doença. Entre risadas e brincadeiras, ouve-se “só quero garantir o meu" da parte dos “civilizados”, que ainda não se convenceram da seriedade da situação, mesmo com algumas mortes já confirmadas por coronavírus. Debaixo daquele sol escaldante, aglomeram-se quem mais foi afetado com isso até agora, nós ticuna, e também nossos parentes Kokama, entre outras etnias que vivem às margens dos rios. Tais populações já perderam vidas pelo contágio do coronavírus por não cumprimento de decretos sancionadas pelas autoridades pedindo para que se aquietem em casa, pois são um “bando de selvagens” mesmo, que não sabem obedecer os decretos municipais – são os discursos de alguns que estão na linha de frente. Pensassem eles como é difícil trabalhar com “parentes", pois cada um tem sua especificidade, devido a diferentes formas de contato no passado e também por ser um fato inédito para eles, pois muita gente ainda nem sabe sequer como lidar com tudo isso. Onde está o atendimento diferenciado? É só mais uma falácia, pelo visto. Não tem sido diferente nos municípios vizinhos, com aglomerações constantes nos portos, nos estabelecimentos comerciais e, principalmente, nas agencias bancárias, lugares que viraram os piores inimigos para a saúde das populações amazônicas, contribuindo ainda mais com o número crescente de infectados e causando mortes aos montes. Fonte: TV Fronteira O Tambaqui. Imagem do primeiro dia da população realizando o primeiro saque do Auxílio Emergencial, no município de Benjamin Constant – AM. Isso me levou a pensar numa outra medida que parecia resolver o problema da maioria dos estudantes brasileiros, já que não se sabe quando vamos poder voltar para as salas de aula. Ofereceram então aulas online, educação a distância e tal, coisa que não é novidade para ninguém que vive próximo a uma grande metrópole ou pode se dar o luxo de acessar uma boa rede de internet. Talvez faltou um pouco de, ou muita, aula de geografia aos nossos “representantes”. Será que eles se esqueceram de que estamos no “fim de (o) mundo”? Mal sabem eles que aqui as coisas funcionam a passos largos, na mesma velocidade do andar de um jabuti. Alguns lugares nem sequer escola têm, quanto mais acesso ao mundo globalizado. Durante os anos que acompanhei alguns trabalhos da FUNAI (Fundação Nacional do Índio), me deparei com uma realidade que os municípios tentam esconder, e que maquiam muito bem para que no final do semestre saia tudo perfeito com todos os alunos aprovados. Situações que ainda permanecem ate os dias atuais. O acesso à informação ainda se dá através do deslocamento dessas populações aos centros urbanos, visto que ainda não há redes de comunicação próxima, e isso dificulta ainda mais saber o que e como estão ali do outro lado e quais medidas já foram tomadas. Tem-se feito pouco caso, sem diferença alguma de onde me encontro. Por outro lado, o fanatismo religioso entre as populações indígenas também tem causado muitos malefícios no meio de muitos. É certo que a forte atuação da Igreja Mundial do Poder de Deus entre o povo ticuna tem contribuído com a rápida proliferação dessa doença em todas as áreas onde habita o meu povo. Foi noticiada nas mídias uma ocasião em comemoração ao dia das mães, em que se encontravam pessoas oriundas da tríplice fronteira. Pois o mesmo pastor dessa igreja convenceu a maioria dos ticuna que isso é uma doença só dos “brancos", e que quem tiver Deus no coração não irá passar por essa provação. E a situação segue presente até o momento. Onde estão nossos “defensores" quando mais precisamos deles? E onde nós nos encontramos em tudo isso, quando o caldo está cada vez mais engrossando para o nosso lado? A resposta é simples: no mesmo lugar onde sempre estivemos desde o início da conquista destes territórios, em último plano, pois assim como as vidas dos “favelados” nos grandes centros urbanos, nossas vidas valem menos do que a deles (tomagü). Teria sido bom se nunca tivessem chegado aqui, assim não estaríamos tendo nossas vidas sendo ceifadas por doenças que não são do nosso mundo. Lembrei-me das histórias que meu falecido avô me contava sobre alguns males que eles vivenciaram no passado, quando eles tinham que se isolar nas áreas mais longínquas possíveis para se abrigar e se proteger. Talvez era o que eu devia ter feito logo no início, mas infelizmente os tempos agora são outros. Talvez seja essa “a queda do céu” de que o parente Davi Yanomami havia nos alertado, ou a terceira guerra mundial. Já vejo cruzes em algumas portas, boatos de feijões mágicos que curam, cabelo encontrado em bíblia como formas de se salvar e até anúncios do apocalipse nas bancas de gasolina. E meu povo, como sempre, tentando ir atrás de um salvador que ainda não chegou, desde o dia em que ele levou consigo o mundo encantado, onde tudo era possível somente com a força das palavras, e nada se conhecia de doença dos alienígenas que aqui chegaram e nos fizeram brasileiros, peruanos e colombianos, e que dizem que todos estamos no mesmo barco. Talvez a canoa esteja cheia de furos e faltando estopa para calafetar as brechas. Ouvimos notícias de que há gente atravessando as fronteiras só para espalhar a doença. Não sei até que ponto chegam a ser reais estes boatos (mas tudo é possível). Noticiam casos confirmados em agentes da frente de combate, que seguem trabalhando assim mesmo, oferecendo mais risco ainda à própria vida e à dos demais. Vivemos em uma negligência total de nosso direito pela vida e numa total idiocracia. Fonte: Arquivo pessoal: Na foto, trânsito diário de pessoas no porto de Leticia – AM (CO), quando a necessidade fala mais alto do que o medo de ser contaminado pelo covid-19. Hoje de manhã, enquanto ainda escrevia, me vem a notícia de que na aldeia da minha família materna, no Peru, sofremos a primeira perda de um tio meu que, na ultima vez em que estive de visita na aldeia, encontrava-se em ótimas condições físicas e mentais. Com a idade já meio avançada, sendo classificado como pertencente ao grupo de risco, veio a óbito, e os outros também se encontravam doentes, como minha vozinha querida, mas me alegrou saber que já estavam se recuperando, com tratamento das nossas próprias medicinas da natureza. É necessário que o trabalho de formiguinha não pare. Eu, daqui; você, daí, vamos conscientizar nossos próximos, principalmente nossos anciãos, para que no amanhã tenhamos com quem aprender, para seguir ensinando nossas histórias às nossas futuras gerações, que nem fazem ideia, na maioria das vezes, do que está acontecendo no mundo. Queria eu que tudo isso não passasse de um sonho, mas todo dia, quando acordo, deparo-me com mais notícias pesadas para qualquer ser humano, principalmente quando as noticias se referem ao povo ticuna, do qual faço parte. A sensação de revolta é maior que a de dor, pois não se sabe ao certo se os recursos que foram liberados para atender a essas populações em fase emergencial, como o meu povo, estão sendo de verdade aplicados. Mas uma coisa é certa: como dizem meus mais velhos, “quando a gente magüta desaparecer, o mundo inteiro irá se acabar”. Fonte: Arquivo pessoal. Cuidemos das nossas crianças, pois a esperança mora nelas.
João Ramos é antropólogo ticuna e mestrando. Faz pesquisa sobre as perspectivas cosmológicas e ritualísticas do povo magüta (ticuna), na região de tríplice fronteira, povo ao qual pertence. Os comentários estão fechados.
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AutoresAna Cláudia Teixeira de Lima, PPGHCS/COC/Fiocruz Arquivos
Novembro 2020
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