“Haverá alguma ‘linguagem’ própria do novo coronavírus?”. Perguntei, numa espécie de conversa reflexiva, íntima e improvisada, em que meus interlocutores eram grãos de milho crioulo (Zea mayz), em um dos primeiros dias oficiais de quarentena. “Milho crioulo” é o nome deste vegetal que deriva de uma bricolagem genética entre três espécies de gramíneas selvagens (o teocintle, o Tripsacum, e um pequeno milho de pipoca ancestral hoje extinto), uma “mistura” experimental feita por mãos humanas, que conta com a ajuda do vento (por onde o pólen viaja até ser capturado pelos cabelos da inflorescência feminina de uma planta adulta). Há quase 10 mil anos, este vegetal foi inventado pelas (e inserido nas) socialidades neolíticas da Mesoamérica, tendo descido o continente, com seus cultivadores, por diferentes trajetos migratórios.
Minha conversa reflexiva com grãozinhos de milho, de cultivos oriundos de aldeias de tradição guarani mbya e assentamentos rurais no Estado de São Paulo, teve por inspiração os ritos oraculares mazatecos (etnia mesoamericana que radica, maiormente, pela região da Serra Madre Oriental, no estado mexicano de Oaxaca), e por companhia, recordações de trabalhos de campo e as palavras de alento que uma chjota chjine (uma senhora sábia, curandeira) mazateca acabara de me enviar, naquele mesmo dia, via WhatsApp. Nos ritos oraculares mazatecos que menciono, os condutores de discursividades são grãos de milho crioulo que devem ser arremessados sobre uma superfície de tecido estendida em uma mesa, em “boleomancia” (do grego, prática de “ler o que for atirado”). Os grãos lançados são analisados por uma ou um chjota chjine (curandeira ou curandeiro), e permitem localizar almas perdidas e, assim, identificar a causa de determinadas enfermidades. Uma vez em procedimento de leitura e transmissão destas informações traçadas, pelas constelações que os grãos de milho formam sobre o tecido, toda e qualquer palavra dita é “palavra-florida de milho”, e esse tipo de palavra pertence a um “mundo florido”, um mundo convivente com o “mundo humano”, onde habitam seres de outro tipo que têm potencial de vida e morte, cura e enfermidade, com os quais os humanos precisam manter relações de respeito e reciprocidade. Qualquer palavra dita em rito de leitura de grãos de milho é chamada de “én najmé” e tem a propriedade de identificar doenças e localizar almas perdidas. Para que o milho possa ter mencionada propriedade, ele precisa estar fértil, podendo completar seu ciclo vegetal. Quando não está em qualidade fértil, quando é contaminado por pólen transgênico (que contém genes provenientes de bactérias que foram inoculadas em laboratório nos grãos de milho), as sementes se tornam suicidas, estéreis, e sua voz oracular silencia: ele perde a possibilidade de nascer e de ter um ciclo direto de vida social e natural, e sua agência e discursividade se esvaziam. Os cultivadores passam a precisar comprar sementes transgênicas para plantá-las, e estas sementes trazem venenos letais a diversos seres polinizadores em seu pacote biotecnológico. Minha conversa reflexiva com o milho me fez recordar que sua propriedade oracular e sua presença em ritos cosmológicos específicos, se manifestam de várias formas em outras regiões do continente. Procurei pensar nos locais de onde provinham os grãozinhos com os quais eu conversava. Na região do sudeste brasileiro, os guaranis mbya (grandes cultivadores de milho crioulo – em guarani, avaxi ete’i, lit., “milho verdadeiro”) realizam o rito do Avaxi Nhemongaraí, em que as almas femininas de parentes distantes podem ser identificadas através da análise que os xeramõie as xejarayi(“anciões e anciãs sábias”) fazem do mbojape, um bolinho confeccionado com grãos de milho moídos, misturados com água, e cozidos ao fogo de chão. Camponeses mestiços do MST, da região metropolitana de Sorocaba, também fazem uso de milho crioulo (de que são guardiões de sementes) em rituais cosmológicos-festivos (como a Festa Junina, em que se confecciona inúmeros pratos que têm o milho como ingrediente principal) e, também, para atividades cotidianas e lúdicas, além da nutrição proporcionada pelo seu alto valor energético: com as palhas de milho, as camas são acolchoadas, permitindo sono com sonhos mais vívidos; e da inflorescência feminina do milho é possível criar bonecos que divertem e aguçam a imaginação infantil. A reflexão sobre a pergunta que realizei aos grãos de milho em minha conversa improvisada, sobre a possível existência de uma “linguagem do novo coronavírus”, longe de ser informativa e direta, mostra-se retroativa e densa. A atitude silenciosa desse vírus, de invadir os núcleos celulares e pirateá-los, causando asfixia e morte de mais de 200 mil pessoas em todo o mundo, em muito permitia recordar a contaminante atitude sem escrúpulos dos genes transgênicos que viajam pelo vento em forma de pólen, e que (antes de serem esse material fecundante) foram elaborados, patenteados, e insertados nas sementes de milho por mãos humanas em práticas laboratoriais de Engenharia Biotecnológica de empresas multinacionais, com fins expressa e decisivamente lucrativos. Perguntei aos grãos de milho: “se as doenças desarticulam almas, que classe de doença é causada pelo novo coronavírus e quais tipos de almas estão sendo desarticuladas?”. Como isto permitiria refletir essa virulenta “linguagem”? No dia 20 de abril de 2020, confirmou-se o primeiro caso de contágio por COVID-19 na Serra Mazateca, e o paciente faleceu pouco tempo depois, fato que levou à suspensão do funcionamento rodoviário e comercial entre diferentes municípios e povoados e à declaração oficial da quarentena. No dia 22 de abril de 2020, a Terra Indígena do Jaraguá, complexo de aldeias guaranis mbya na cidade de São Paulo (capital do Estado de São Paulo), local que teve pouco acesso a testes de COVID-19 e que tem condições muito precárias para tratamento e prática de isolamento físico, teve a confirmação de um primeiro caso de contágio, estando o paciente, atualmente, com sintomas leves sem sair de sua casa. Pouco antes do início da quarentena de combate à pandemia, no dia 30 de janeiro de 2020, parte de um território ligado à TI do Jaraguá, lugar de mata atlântica nativa, foi invadido pela Construtora Tenda, contando com funcionários que em curto tempo, derrubaram mais de 4 mil árvores nativas. A Construtora Tenda, com alvará aprovado pela Prefeitura da Cidade de São Paulo em tempo recorde, estando liberada “oficialmente” pelo Estado e município a utilizar o território e desmatar a região, apresentava como projeto a construção de um condomínio de alto padrão, de prédios com vista para o Pico do Jaraguá (o ponto mais alto da cidade). Os guaranis expulsaram os funcionários da empreiteira, e organizaram um acampamento de vigília ao qual deram o nome de “Ocupação Yary Ty”. Este acampamento durou quarenta dias, contando com diversas atividades rituais e lúdicas, e com a ajuda da mídia livre nacional e internacional. No dia 10 de março, a Polícia Militar, a mando da Construtora Tenda, invadiu a rodovia que dá acesso ao local, e os indígenas responderam com um protesto com cantos, rezas, cartazes, e com o acordo de deixarem o acampamento enquanto o espaço se mantinha juridicamente embargado, podendo manter a vigília do lado de fora do local. Com a declaração da quarentena em combate à pandemia, alguns dias depois, os indígenas voltaram ao interior de suas aldeias para cumprir com o isolamento físico recomendado, mas o que não esperavam aconteceu: uma nova invasão de empreiteiros ligados à Tenda, escoltados por policiais no espaço da Ocupação Yary Ty, foi verificada no início do dia 25 de março: eles ingressaram na região pela madrugada, chamando a uma das lideranças ao local para “conversar”, enquanto distribuíam cercas elétricas e câmeras em postes. Os indígenas denunciaram o ocorrido desde então, em redes sociais e a órgãos competentes, mas somente a partir do dia 07 de abril, por determinação da juíza da 14ª Vara Cível Federal de São Paulo, as obras e os manejos arbóreos foram declarados suspensos por tempo indeterminado. Nesse mesmo período, a distribuição de alimentos orgânicos, oriundos de cultivares crioulos feitos por camponeses mestiços de assentamentos rurais (vinculados ao MST – com territórios reconhecidos pelo ITESP e pelo INCRA, no fim dos anos 1990, no intuito de atender a demandas de reflorestamento de zonas desertificadas pelo agronegócio) da região metropolitana de Sorocaba (a 100 km de São Paulo capital), passou por um processo de reelaboração: uso de EPIs protocolares e de um revezamento de locais de ponto de entrega dentro dos perímetros urbanos foram as medidas que permitiram dar continuidade às atividades da Comunidade que Sustenta a Agricultura (CSA, ver: http://csasorocaba.org.br/), um projeto que reúne agricultores assentados e co-agricultores que vivem nas cidades dentro da lógica da “cultura do apreço” (em vez da “cultura do preço”), e da “economia solidária”. A reelaboração contou com ciclos de doações de alimentos da CSA a entidades e bairros carentes. Campanhas de abastecimento de alimentos, sabonetes, álcool gel e outros EPIs, também foram articuladas pelos membros da CSA no intuito de serem encaminhadas à aldeia Guyra Pepo, de tradição guarani mbya, localizada no município de Tapiraí (na região metropolitana de Sorocaba), atendendo-se a medidas protocolares necessárias durante todo o transporte. A aldeia Guyra Pepo, aliás, tem profunda ligação com a TI do Jaraguá, e sua identificação agrária lembra a atual ação destrutiva da Construtora Tenda: há 20 anos atrás, guaranis mbya foram despojados de seus territórios na cidade de São Paulo, próximo à região do Jaraguá, para a construção da Rodovia Rodoanel Mário Covas (com projeto aprovado em 1998, quando desmataram a área e iniciaram sua construção). Os indígenas protestaram e entraram com recurso pela ação das construtoras rodoviárias, mas somente em 2018, puderam receber uma indenização que os possibilitou a aquisição deste território (de aprox. 400 hectares) em Tapiraí. Minha conversa reflexiva com os grãos de milho revela destruição. Revela que o novo coronavírus inaugura um momento em que a “magnitude” humana (moderna, pós-colonial e pós-industrial) é questionada. Revela que a derrubada de árvores num decisivo descompromisso com a produção de oxigênio (agora escasso aos pacientes com COVID-19), e a modificação genética de organismos vegetais junto à expansão desenfreada de uso de venenos que afetam vias respiratórias humanas e de outros animais (quebrando correntes de polinização natural, assassinando invertebrados e vertebrados), são ações que contam com um apoio irresponsável de autoridades negacionistas, engajadas a matrizes bioéticas que separam o ser humano da natureza, e que derivam das lógicas coloniais de extrativismo, monocultura e monopensamento. Estas mesmas medidas, como afirmam as hipóteses mais aceitas até o momento, foram responsáveis pela elaboração (mediante mutação a partir de outros vírus-corona) e propagação deste novo coronavírus. A invasão agressiva do habitatde polinizadores morcegos (Horseshoe bat), e o consumo alimentar excessivo de sua carne (feito amplamente em países asiáticos, e fortemente na cidade de Wuhan, China), causaram estresse e estados somáticos peculiares para que estes mamíferos voadores pudessem se tornar hospedeiros resistentes e, assim, vetores de transmissão dessa espécie de “infravida” que é o COVID-19. Se as bactérias inseridas na transgênese têm o potencial de exterminar a qualidade crioula do milho, e se os vírus de COVID-19 têm o potencial de enfermar toda a população mundial (configurando a “pandemia”), tanto os seres humanos quanto o milho em qualidade crioula estão, juntos, íntima e geneticamente ameaçados por seres microscópicos e invisíveis. Conversar com os grãos de milho, estes que têm em seus agenciamentos e discursividades as bricolagens crioulas dos indígenas e dos camponeses mestiços, permite entrever que a doença provocada pelo COVID-19 e aquela, anterior à pandemia, de ordem biotecnológica, transgênica, monocultural, ligada ao agronegócio, à especulação imobiliária e ao desenvolvimentismo, têm como linguagens uma espécie de “anti-voz” nociva, com poder de asfixiar (e silenciar) populações inteiras, de humanos e não-humanos. Uma possível reversão, de resgate e rearticulação de almas perdidas, dentro deste quadro somático-social pandêmico, está nas mãos das cultivadoras e cultivadores: está em suas cosmopolíticas, em seus ritos culinários, festivos e oraculares, no cuidado das sementes crioulas (dos quais são guardiãs e guardiões) e, portanto, na articulação de agenciamentos e discursividades que atravessam e comunicam diferentes ontologias, que atravessam sem invadir, sem devastar, extrair, dominar, silenciar ou asfixiar. Ana Paula Lino de Jesus [[email protected]] é doutoranda no PPGAS/MN/UFRJ. Seu projeto de pesquisa e de tese tem como título: “Quando o milho se cala: sobre as esterilizações do milho partindo da Serra Mazateca de Oaxaca, México”. Fez pesquisa de campo no México e, no Brasil, em aldeias guarani e assentamento agrários no estado de São Paulo. Os comentários estão fechados.
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AutoresAna Cláudia Teixeira de Lima, PPGHCS/COC/Fiocruz Arquivos
Novembro 2020
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