Quixote, Dali e outros moinhos culturais - [Pedro Souza Moreira da Silva, PPGHCS/COC/Fiocruz]15/5/2020
Em uma já longínqua época, onde ainda vivíamos em um país e, por isso, ainda tínhamos um presidente, o mandatário do cargo proferiu um discurso que me ecoa, e muito, nesses tempos de quarentena. Ao proferi-lo em sua posse, disse que era o momento “do reencontro do Brasil consigo mesmo”. Era homem, mas visto como um cefalópode, julgado por hipoteticamente ter um sistema nervoso pouco complexo e, em consequência, erroneamente considerado pouco afeito a arroubos cognitivos. Porém, esse ser nectônico, que navegou por mares intocados desde os tempos de Isabel, conseguiu com seus incansáveis tentáculos abraçar uma porção de gente que sentia aquele estranho frio que queima por dentro e que faz a sensação de vazio ser só um ponto nessa imensidão deserta de nutrientes.
Longe de querer julgar as façanhas ou bolsas de tinta que mancham ostras e outras iguarias marítimas marinadas por quase uma década, me prendo ao discurso da posse, sem deixar, evidentemente, de desabafar sobre a saudade dessa miscelânea aquático-social. Essa quarentena está sendo um momento de reencontro do eu comigo mesmo. Isso porque o estranho frio que queima por dentro não me ataca as entranhas. Mesmo à distância, mantenho-me exitoso em oferecer minha força de trabalho em troca de contas pagas. É um reencontro, pois todo o reencontro envolve pelo menos dois que já se conheciam e que, nesse inevitável ringue de Heráclito, se encontram sempre pela primeira vez. Nesse reencontro entre o eu externo (corpomente) e o interno (desejosensação) pude reencontrar, pela enésima vez, a História. Com ela saio de cavernas, subo em acrópoles, viajo por realidades estrangeiras conhecidas e desconhecidas mais uma vez e pela primeira vez, concomitantemente. Acho demasiadamente duvidoso dizer que me afasto ou aproximo da História alternadamente. Na realidade nua e crua, nunca nos afastamos. Porém, diante das mazelas oriundas das obrigatoriedades financeiras que esse mundão nos traz, as vezes não consigo ouvir as palavras que ela me sussurra através de territórios tão paraguaios, tão platinos e sempre tão pantanosos. Isolado, consigo enfim ouvir o recitar de seus versos ao pé do meu ouvido, que me arrepiam de medo e desejo ao longo das páginas impressas em um dispositivo online. Nesse tempo de quarentena, a distância e a proximidade têm se mostrado ambíguas ao evidenciar o amor, esse negócio que transcende qualquer parâmetro da fisio-psiquê humana. Mesmo sabendo da impossibilidade de tal ato, deixarei o debate sobre o que é o amor de lado por um tempo, já que ele tomaria de assalto todos os parágrafos aqui tentados sem ao menos percebermos. A proximidade intensa e obrigatória com a minha esposa tem me feito cair em uma descrição tão densa, que nem mesmo o antropólogo mais atento poderia imaginar. Viajando nos pormenores da nossa relação, pude perceber que a amo tanto, independentemente de qualquer que seja a angular de observação proposta. Nos detalhes e nas generalidades, meu amor pela Gabi é cada vez mais posto de forma escancarada nas janelas do nosso apartamento que, por conta disso, mais liberta do que aprisiona. A distância tem ativado minhas celulases que ficaram tanto tempo ocultas nessa genética histórico-biológica-musical por vezes cambiante. Ai que saudades do arquivo! Digo de minhas celulases pois, mesmo sem tê-las de forma explícita, códons emanam da sequência de bases que estão filogeneticamente evidenciadas no gosto pelo cheiro de papiros indecifráveis, todos singela e confusamente armazenados em palácios republicanos (os imperiais ainda hei de visitar!). Por ter esse jeitão de traça e cara de cupim, que falta me faz o contato com os documentos que, mesmo sem jorrar nenhuma gota d'água, são fontes inesgotáveis de inspiração e dados (basta fazer as perguntas corretamente, não é mesmo?). Ao longo dos últimos dois anos percebi essa minha, outrora oculta, verve papirofágica. Porém, esse momento de impossibilidade do contato com tais artefatos que nos permitem brincar como uma criança einsteiniana, deformando, se informando e interpretando o espaço-tempo, tornou-a muita mais evidente. Mais uma vez, grito para eu mesmo ouvir: que saudade do arquivo!!! Entre banhos de álcool 70%, ministrar aulas para displays (que para alguns são mais complexos do que derivadas e integrais no Fund I) e postagens em plataformas nas quais até mesmo o Gancho não se atreveria em acossar a Sininho, tenho conseguido ler bastante. Dessas leituras, deixo aqui algumas impressões, mesmo que estas tenham mais jeito de um violão cubista (e braqueano) do que um do ré mi emanado de uma flauta doce. Um dia fui a uma exposição no centro da cidade. Faz bastante tempo. Se tratava de algumas produções de Salvador Dali. Dentro daquele apanhado de pinturas e desenhos que me impressionaram bastante, estavam algumas ilustrações produzidas para abrilhantar obras literárias já bem conhecidas (ou pelo menos foi isso que atordoadamente compreendi). Lembro bem da lisergia das obras para Alice no País das Maravilhas. Aqueles coloridos incríveis convenceriam até o mais convicto dos coelhos que laranja é uma cor simples para o brilho dos sabores carotenóidicos e lipídicos em geral. Mas confesso que, mesmo sendo a produção de Dali para o País algo incrível, os trabalhos ligados ao livro de Miguel de Cervantes me marcaram de forma muito mais singular. Das ilustrações para as aventuras de Quixote e Sancho, uma possuía um grande X carregado na tinta, borrado/pintado na parte superior de um papel. Aquilo era e é, até hoje para mim, o mais lúcido e convincente moinho que já vi. Lendo algumas histórias italianas e também outras sobre balineses e marroquinos, pude entender finalmente porque Quixote batalhava contra moinhos, que aquilo estava longe de ser algum tipo de sandice e mais: pude compreender por que, ao ver aquele borrão pintado na parte superior do papel, instantaneamente o moinho girou dentro da minha cabeça. Talvez mais do que isso, pude compreender e sentir que as teses e dissertações são produzidas por outputs oriundos da nossa mente-coração-psiquê-corpo. É mais do que evidente que inputs provenientes das bibliotecas e professores são totalmente indispensáveis. Sem isso nosso sistema nervoso claudica e nem mesmo pode ser chamado desta maneira. Porém, grande parte do potencial que produzirá um trabalho acadêmico, uma poesia, uma pintura ou melodia (respeitando e considerando o papel indissociável dos sistemas simbólicos de cada povo em todos os citados processos) está dentro da gente e pode e precisa ser cultivado e fortalecido neste momento de isolamento. Talvez seja uma oportunidade, mesmo que indesejada, imposta e extremamente assustadora, de nos lapidarmos internamente. Sempre vale lembrar que Bloch escreveu um dos textos mais belos e impressionantes do século XX do chão de uma cela. Ele não tinha acesso a bibliotecas, simpósios, conversas e muito menos a todos esses dáblio dáblio dáblios e agá tê tê pês que tanto atazanam e facilitam a vida da gente. Diante desta pandemia, torço com enorme afinco para a melhora dos enfermos, para a saciedade daqueles que não a tem e tento ficar são diante dessa imensidão de possibilidades nervosas, quixotescas e culturais que tanto me cativam. Algumas referências: BLOCH, Marc. Apologia da História, ou O Ofício do Historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro. LTC, 2008 GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. O cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela inquisição. São Paulo. Companhia das Letras, 2008 PRESIDENTE DA SEMANA (podcast) - Folha de São Paulo episódio 26. Locutor: Rodrigo Vizeu. Entrevistados: André Singer e Demétrio Magnoli.2018 Pedro Souza Moreira da Silva é professor de Biologia e Ciências. Atualmente também é doutorando do PPGHCS (COC/Fiocruz). Seu objeto de pesquisa é a relação entre tropas, plantas e ambiente na Guerra do Paraguai. Email: [email protected]. Os comentários estão fechados.
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AutoresAna Cláudia Teixeira de Lima, PPGHCS/COC/Fiocruz Arquivos
Novembro 2020
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