Dia 4 de junho de 2020. Hoje acordei com a notícia de que já temos 89 caso de Covid-19 na cidade de Atalaia do Norte. Com preocupação à flor da pele escrevo esta mensagem. Estou há quase três meses em isolamento social na minha cidadezinha chamada Atalaia do Norte, na tríplice fronteira entre Colômbia, Peru e Brasil. Quando as restrições de isolamento social começaram a ser acatadas pelas autoridades locais, eu, mesmo sabendo do grau de estrago que a pandemia de Covid-19 estava causando em outras regiões, conforme diziam os noticiários, senti-me bem protegida e longe de ser alcançada por vírus. Pior, logo que cheguei, na primeira semana, peguei "um forte gripe" com sintomas parecidos aos do vírus. Quando profissionais de saúde souberam, pediram meu isolamento social. Tinha vindo com muita saudade de rever meus parentes e amigos. Queria abraçá-los. Tenho a “minha mais velha” (shavoyomema, em língua marubo), chamada Iracy (Ni-shavo Kama). Queria muito estar na sua companhia, ouvir suas histórias, pois, pela sua idade avançada, não sei até quando tempo ela estará entre nós. Agora a preocupação de a não ver com mais tempo aumentou. O medo de perder meus parentes mais velhos não é paranoia minha. Tenho acompanhando pelas redes sociais (grupos de whatsapp, Facebook, Instagram e YouTube) que outras etnias vizinhas no território colombiano, peruano e brasileiro, principalmente na região do alto Solimões, estão perdendo grandes lideranças que têm uma trajetória de vida na luta por nossos direitos. Tradicionalmente falando, os mais velhos são importantes para as populações Indígenas. É uma perda irreparável. Não somos os brancos (nawa-rasin) que só dão importância aos conhecimentos que estão nos papéis. Nossa riqueza está na memória dos mais velhos. Como Marubo, digo que é o que nos torna yura-kuin, “gente de verdade”. É pavoroso imaginar que mais cedo ou mais tarde esse inimigo invisível chegará à minha região. A única coisa que me dá esperança é a luta de meus pajés. Assim como em outras etnias dessa região, meus parentes pajés estão tentando amansar a doença. Logo que cheguei, meu pai e outros que estão nas aldeias estavam se comunicando através da radiofonia para saber os sintomas do vírus. Depois fizeram pajelança da massa de jenipapo para que todas as populações se pintassem, mas não conseguiram, porque a ordem de isolamento social da prefeitura os impediu de fazer aglomeração na cidade. Ressalto que, como em qualquer outra região, os indígenas residentes nas aldeias levam seus filhos para estudar na cidade, e isso ultimamente tem aumentado. Muitos não têm veículo próprio para voltar a suas aldeias na época de férias. Movimentos como a União dos Povos Indígena Vale do Javari – UNIVAJA, juntamente com outras instituições, ajudaram, com gasolina e canoas, para que os estudantes indígenas e seus parentes retornassem a suas aldeias. Mesmo assim, ainda permaneceram funcionários dos estados e município. As compras de alimentação já eram difíceis, mas de uma hora para outra todos os comércios triplicaram os preços de suas mercadorias. As populações correm para fazer estoque e exageram. Vejo os que não têm emprego e que dependem dos benefícios do governo, da pescaria e da roça (agricultores), brigarem por migalhas, como sempre. Com a desigualdade social cada vez mais visível, é uma sensação desesperadora imaginar que isso não vai ter fim. Enfim, como não posso ajudar muito, a minha pequena contribuição está sendo manter meu pai informado sobre os sintomas do Covid-19 para dar continuidade à pajelança de amansamento do vírus, graças às instalações de rede celular que foram feitas em algumas aldeias. Havia vindo para entrevistar o irmão de minha mãe (meu koka Tama-sainpa), oriundo da aldeia maronal do alto Rio Curuçá, mas só tive tempo de realizar três encontros de entrevista. Ele viajou às pressas e não pude me despedir. Estava muito gripada, não podia sair de casa, e em seguida meu pai também viajou. A impressão é de que minha única arma é meu corpo pintado de jenipapo para amansar a doença, para que meus parentes das aldeias estejam protegidos, mas os meses de maio e junho estão tirando meu sossego. Desde que tivemos a confirmação do Covid-19 nesta cidade, o número de caso só está crescendo. Já noticiaram o primeiro óbito e, além disso, há notícias de que caçadores e pescadores estão invadindo nossa Terra Indígena. Entre a população em geral só se fala do presidente do Brasil, que espalha suas palavras espinhosas. Nosso futuro é cada vez mais sombrio, surgem cada vez mais mentes confusas. Que lição tiraremos daqui para frente? A tendência do Covid-19 é se propagar mais nesta região, pois a cidade vizinha, Benjamin Constant, afrouxou nessa segunda-feira o isolamento social. Ainda nesta semana os transportes fluviais entre Tabantiga e Benjamin Constant também voltarão a funcionar. Como vai ser o futuro? Que lições tiraremos disso tudo daqui para frente? Transcrição de mensagens áudio recebidas por Bruna Franchetto, com autorização da autora. Nelly Barbosa Duarte Dollis, da etnia marubo, é doutoranda no PPGAS/MN/UFRJ. O tema de sua pesquisa é uma revisão do sistema e das relações de parentesco marubo, do ponto de vista indígena. Nelly está em isolamento em Atalaia do Norte (AM), onde foi confirmado o primeiro caso de contágio por Covid-19. Os comentários estão fechados.
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AutoresAna Cláudia Teixeira de Lima, PPGHCS/COC/Fiocruz Arquivos
Novembro 2020
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